quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

N de "Nous deux encore" (II)


A DOIS PASSOS


Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais 
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós 
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso - esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que 
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno - estava-se bem. 


Rui Caeiro, "Do inferno - cinco aproximações"
in Telhados de Vidro n.12,
Lisboa: Averno, Maio 2009

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

H de Humanidade (V)


[...]
Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.


Albert Camus, O Mito de Sísifo,
trad. Urbano Tavares Rodrigues,
Lisboa: Livros do Brasil, s/d




[Emile Savitry, "Alberto Giacometti dans son atelier", c.1946]

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

L de Lunário


II

Não esperava, trinta anos depois, reconhecer
a Nazaré. Igual a si mesma, fintou o progresso
no desmando da morte e no cheiro seco
dos carapaus jacentes (só um gato preto, sem
jeito para o negócio, foi poupado ao extermínio).

Diferente é apenas vê-la agora desta varanda,
contigo ao lado, e perceber a alegria que
irmana telhados e balcões, sob os farrapos
de uma língua apátrida que nem o amor
nem o mar conseguiriam devidamente 'pardonner'.

Um homem de fato completo deixou-nos ver a lua.


Manuel de Freitas, Pedacinhos de ossos,
Lisboa: Averno, 2012




[ID | 21/01/019]

P de Prazeres


A TIA JEANNETTE


Ela lia a borra do café
e dava o dinheiro aos cegos.
O resplendor da janela
atravessava-lhe a escassa cabeleira
até alcançar a demi-tasse que a mão segurava.

"Vejo tormenta", disse um dia.
Não sei se falava de mim.

A minha mãe encerrava a dor nos livros. E Jeannette,
que trazia no nome a sua sina, preferia a leitura do café.

Todas as tardes na sua casa a fila de mentes desesperadas:
que uma viagem, que a amante, que a morte,
um encontro, qualquer coisa
que tornasse extraordinária a sua vida simples.

Ela, Jeannette, era a essência imperfeita do amor,
cega entre cegos velava a tormenta. 

"Escreve tudo", disse-lhe, "escreve tudo o que vês."
Nunca me ouviu, ausente,
sob o esfumado da lua. 


Jeannette Lozano
in Los momentos del agua, Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2006
[Trad. ID]






[Henri Fantin-Latour]

sábado, 19 de janeiro de 2019

S de Sense of Snow (XV)


"[...]
The glass of the window was covered with mist, and I started writing words. Moor. Heather. Snowdrop. I needed those words to feel safe.
[...]"

Ana Teresa Pereira, Fugue States,
London, Vanguard Editions, 2018



 


[ID, Vale | 01/019]

Começar o dia com um livro novo (XLV)


A CADA DIA


A cada dia a sua descoberta: a luz
acesa pra se ver a côr dos sons.

[...]

A cada dia o seu poema de viver:
ver o Anjo da morte e não morrer.


António Barahona, Ocarina (Terceiro Tômo da Suma Poética),
com capa de Andrea Martha (Mumtazz) e arranjo gráfico de Inês Mateus,
Lisboa: Averno, 2016





[ID, 'Aubade', 2013]