quarta-feira, 29 de abril de 2020

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" (XXXVIII)


V

A um sol de oiro,
cai em golas, das folhas,
a manhã deslumbrada.

Vai o menino
atirar pedras às águas
(leva os bolsos cheios
de calhaus colhidos
nas furnas da pedreira).

[...]


- CARLOS DE OLIVEIRA





[ID | S. Miguel | 08/012]

domingo, 26 de abril de 2020

Q de Quarentena (V)


INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA AO RELÓGIO


     Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
     Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada. 


Julio Cortázar, Histórias de cronópios e famas,
trad. de Alfacinha da Silva,
Lisboa, Estampa, 1973




sábado, 18 de abril de 2020

N de "Nous deux encore" (VIII)


Sem mo dizeres - compreendi que a nossa vida é, principalmente, a vida dos outros... Melhor: compreendi que a ternura era o melhor da vida. O resto não vale nada. [...] O importante é a comunicação de alma para alma. A mão que aperta a nossa mão, o olhar húmido que procura o nosso olhar, o sorriso que nos acolhe, desvendam-nos o mundo. Às vezes é um nada que nos faz reflectir, é o momento, é uma figura que nos entra pela porta dentro e de que nos sentimos logo irmãos...


Raul Brandão, "O Silêncio e o Lume"
(Dezembro, 1924)

sexta-feira, 10 de abril de 2020

P de Poética (LXI)


Julgavas, então, que a poesia era um discurso
de palavras em sentido? Sei quanto a musa aprecia
glória, poder e uniforme, quanto aguarda
o cavaleiro que produz.
A vida, afinal, anda lá fora, antes da folha
ter passado a prensa;
a mais pequena árvore é verde eterna, comparada ao arbusto
que, mal tocada a haste, se desvai em fumo.

Por isso eu fico lendo as crónicas, as lendas,
o jornal que, bem ou mal, cruza as palavras com o tempo,
e contudo! quando o lábio se engana, solta
a mais aguda fífia do trombone,
e de repente o corpo sabe a gente, e então se diz: eis
a verdadeira e pura poesia! pois seria, talvez,
somente a tua mão, cobrindo a folha.


- ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE





Edward Burne-Jones
[detalhe]

terça-feira, 7 de abril de 2020

Q de Quarentena (IV)


Eram sete e meia.
O mais tarde que podias entrar era até às oito
e depois das oito tornava-se reparado.
Havia ordem no mundo
e meia-hora para nós,
meia-hora que não foi como queríamos
meia-hora em que cada um de nós nos prejudicava
habituados que estávamos a não nos termos visto nunca.
Levámos meia-hora a combinar outra hora para nós
meia-hora que afinal só começou depois de terminada
ao despedirmo-nos até à vista.
E até tornar a ver-te
eu não me senti, nem a fome, nem a sede
nem outra vontade que tu,
fiz como os poetas
que apagam a realidade
para lhe pôr outra melhor por cima.


José de Almada Negreiros, Poemas,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2005





[ID, Guimarães, 08/013]

domingo, 5 de abril de 2020

Q de Quarentena (III)


"[...]

Passa uma faca sobre a vida. Tudo se apaga. A  tentação de parar ao lado de alguém é esta chuva branda, esta música de infância, testemunho a passar até onde pudermos, até desaparecermos ao longe, atrás dos rios e das montanhas, no vento dos transes dos navios, no clima dos campos de combate, onde já não são sombras quem nos espera, mas uma quarentena, a catedral, o elevador que desce até ao infinito glaciar da vida."


Ernesto Sampaio, As Coisas Naturais,
Lisboa: Averno, 2013

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Q de Quarentena (II)


CHORDS



Birds leave behind
shadows in a nest

so leave your lamp
instrument and book

let us go to a hill
where air grows

I will point out
the absent star

tender rootlets
buried by turf

springs of cloud
rising unsullied

a wind lends its mouth
so that we migth sing

we'll knit our brows
we won't say a word

clouds have haloes
just like the saints

we have black pebbles
where eyes should be

a good memory cures
the scar a loss leaves

radiance may descend
down our bent backs

verily verily I say unto you
great is the abyss
between us
and the light


- ZBIGNIEW HERBERT





[ID | Santarém, 30/03/13]