segunda-feira, 21 de março de 2022

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     Eis o papel da poesia. Ela desvela, no sentido pleno do termo. Ela mostra nuas, sob uma luz que afasta o torpor, as coisas surpreendentes que nos rodeiam e que os nossos sentidos registavam maquinalmente.
     É inútil ir muito longe à procura de objectos e sentimentos bizarros para surpreender o sonhador acordado. É esse o sistema do mau poeta e o que nos acontece com o exotismo.
     Trata-se, sim, de lhe mostrar aquilo sobre o qual o seu coração e os seus olhos deslizam todos os dias, mas sob um ângulo e a uma tal velocidade que lhe pareça vê-lo e comover-se com isso pela primeira vez.
     Eis a única criação permitida à criatura.
     Pois, se é verdade que a multiplicidade de olhares deixa sobre as estátuas uma pátina, os lugares comuns, obras-primas eternas, estão cobertos por uma espessa camada que os torna invisíveis e que esconde a sua beleza.
     Se pegarem num lugar comum, o limparem, o esfregarem, o iluminarem de maneira a que ele recupere a força da juventude e da frescura que tinha na origem, farão o ofício de poeta.
     Tudo o mais é literatura.   

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Jean Cocteau, Le Secret Professionnel, 1922
[Trad. e fotografia: Inês Dias]

domingo, 20 de março de 2022

I de Infância


LEMBRANÇA DA RIA DE FARO


Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caidada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia


- GASTÃO CRUZ