quinta-feira, 30 de julho de 2020

A de A poesia é o menos (XII)


Por vezes distraio-me, Galateia, a olhar os outros
E esqueço o amor, nosso.
Mas um poema sem gente é um lugar
Cheio de pedras com palavras à volta.
É maior o mundo e a literatura em redor.
Nós, não;
O que somos é isto onde estamos,
Ao colo de uma distracção.


Nunes da Rocha, Colóquios dos Simples,
Lisboa, Averno, 2020

segunda-feira, 27 de julho de 2020

S de Santa Cruz (IV)


NO FUNDO DO SONHO


Às vezes tenho sonhos como mares:
as suas ondas batem-me, magoam-me,
deixam-me um gosto a sal sob a língua,
emaranham os meus cabelos e afogam-me.
E, quando chego ao fundo, repugnam-me
os seres que o habitam e o sujam,
seres escorregadios e viscosos,
sem pálpebras e sem extremidades,
sem linguagem, lágrimas ou ruído.
Às vezes tenho sonhos como mares
e, quando desperto enfim de um deles,
sei que me salvei de mais um naufrágio.


Amalia Bautista, Conta-mo outra vez,
trad. de Inês Dias, Lisboa, Averno, 2020


domingo, 26 de julho de 2020

O de "O mar, o mar" (IX)




Olivia de Havilland
[1916-2020]

F de "(Une) famille d'arbres" (X)




"[...] Whoever has learned how to listen to trees no longer wants to be a tree. He wants to be nothing except what he is. That is home. That is happiness."

- HERMANN HESSE

sábado, 25 de julho de 2020

P de Paralelo W (III)




É esse o nome desta gata, que passou cinco meses na rua e vive agora numa espécie de livraria. A mão trémula de um amigo procurou hoje tocar-lhe o focinho - negro, como quase tudo nela. A Ginja aceitou o afago, e eu não fugiria muito à verdade se afirmasse que se encontraram, nesse preciso momento, os dois melhores críticos literários portugueses. Na Rua dos Correeiros, ao entardecer.




- MANUEL DE FREITAS - texto
DÉBORA FIGUEIREDO - desenhos

[Manuel de Freitas / João Paulo Esteves da Silva, Prelúdios,
Lisboa, Alambique, 2020]

quinta-feira, 23 de julho de 2020

C de Começar o dia com um livro novo (LVII)




A. MARIA DE JESUS
(Reservado o direito de admissão, com poemas de João Paulo Esteves da Silva, José Carlos Soares, Nunes da Rocha, José Alberto Oliveira, Rui Nunes, Vítor Nogueira, Abel Neves, Nuno Moura, Miguel Martins, Fábio Neves Marcelino, A. Maria de Jesus, Teresa M. G. Jardim, Ana Paula Inácio, Fernando Guerreiro, Manuel de Freitas, Paulo da Costa Domingos, Inês Dias, A. M.Pires Cabral, Renata Correia Botelho, Emanuel Jorge Botelho, António Barahona e Ricardo Álvaro
(Piantao, Julho de 2020)

terça-feira, 21 de julho de 2020

C de Começar o dia com um livro novo (LVI)


SOL MAIOR


Mataram, deitaram abaixo o meu mestre de poesia. Era um telhado com muitos gatos que apareciam e desapareciam através de buracos.

Eu via-os, da varanda em frente, e aprendia a esvair a tristeza nos movimentos elegantes.


- JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA
(Manuel de Freitas / João-Paulo Esteves da Silva, Prelúdios
Lisboa, Alambique, 2020)




[ID, 'Confinamento', 03/020]

segunda-feira, 20 de julho de 2020

P de "(As) Praias Obscuras" (III)




António Nobre, ,
2.ª ed. revista, aumentada e ilustrada, Lisboa: Guillard, Aillaud & C.ª, 1898



P de (Po)ética - XLIX d


À BEIRA DE UM MAR PARECIDO


Sim, tenho ouvido dizer
que as grandes causas
são grandes e lucrativas.

Mas prefiro falar
daquele armário azul
encostado ao coração
podre.


Manuel de Freitas, Game Over, 2.ª ed. rev.,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos,
Lisboa: Alambique, 2017



domingo, 19 de julho de 2020

P de Pássaros anónimos (XVIII)





recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


Al Berto, Horto de Incêndio,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997





[ID, Santa Cruz,  2016-2018]

quinta-feira, 16 de julho de 2020

P de Perder a cabeça - IV b


(O pardal)

A catástrofe das pequenas coisas.
Um pássaro canta sobre a esfera de pedra.
Envolve-o a secura, não a do deserto, mas a do cimento. Desbotado.
Nem um vaso, nem uma cadeira, nem um toldo, nem uma rosa de ninguém:
a luz nos mosaicos anuncia a aridez de uma execução.
A catástrofe das pequenas coisas.
Em baixo, tão em baixo que é preciso olhar para baixo, o artifício das árvores. É esta varanda que lhes tira a humanidade. Mas que é a humanidade de uma árvore? Não o pássaro que a esfera tornou um pássaro de pedra. Um canto de pedra.
Que acrescenta à pedra a forma de um voo.
Não lhe atenua a aridez:
exalta-a.
Exibe-a.
A catástrofe das pequenas coisas.
Não lhe vejo o bico entreaberto, nem o estremecimento das penas: ouço-lhe o canto.
Como um memorial.
De súbito, levantará voo.
E a pedra deixará a pedra. Sem uma marca.
:
um osso exposto
fractura quem o vê?


Rui Nunes, A Crisálida,
Lisboa, Relógio D'Água, 2016




[ID, 'Memory of a bird', 07/020]

domingo, 12 de julho de 2020

F de Flor Suficiente (XXIII)


"[...]
Mas há dias encontrei, por acaso, um nenúfar branco, e a estação pela qual esperava chegou finalmente. É o símbolo da pureza. Nasce tão belo e puro perante os nossos olhos, e tão docemente perfumado, como se pretendesse mostrar-nos a pureza e doçura que podem brotar do lodo e do esterco da terra. [...]
A escravatura e o servilismo nunca produziram anualmente flores perfumadas para encantar os sentidos dos homens, pois não têm vida real: são apenas decadência e morte, desagradáveis para qualquer nariz saudável. Não nos queixamos de que estejam vivos, mas sim de que não sejam enterrados. Deixem que os vivos os enterrem até eles servem para estrume."


Henry David Thoreau, "A Escravatura no Massachusetts",
A Desobediênia Civil e Outros Ensaios, trad. de Inês Dias,
Lisboa, Relógio D'Água, 2017




[ID | Lisboa | Junho 018]

L de "Les yeux du chat" (IV)




EUGÉNIO DE ANDRADE

terça-feira, 7 de julho de 2020

sábado, 4 de julho de 2020

A de "A propósito de andorinhas" (X)



Takahashi Shôtei, 'Village with Japanese Yellow Rose', b. 1916

S de Solidão (ou C de Comunidade) LXIX




Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria,
trad. de Mário Rui de Oliveira, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

sexta-feira, 3 de julho de 2020

C de Complicadíssima Teia



Le Journal de Jules Renard lu par Fred
[1988]


*



[ID | Madeira, 12/019]

quarta-feira, 1 de julho de 2020

B de Boal


A ILHA


para a Ângela


A ilha era deserta e o mar com medo
de tanta solidão já te sonhava:
ia em vento chamar-te para longe
e longamente em espuma te esperava.

À cinza dos rochedos atirava
na grande madrugada adormecida,
já saudosos de ti, os braços de água,
sem ter acontecido a tua vida.

Sim, meu amor, antes de Zarco vir
provar o sumo e o travo à solidão,
no litoral de pedra pressentida
o mar imaginava esta canção.

E as lúcidas gaivotas desse tempo
talhavam com um voo o teu amor:
o início de lava e sal que deixa
(talvez) neste poema algum esplendor (1).

_____

(1) A ilha hoje é um paraíso inglês
     de orquídeas e renques orvalhados:
     mister X e a cana do açúcar
     mister Y, bancos, luz, bordados.

     Ó Cesário, pudesses tu voltar
     e deste cais onde não há varinas
     ver os garotos na água a implorar
     (sir, one penny) o oiro das neblinas.


CARLOS DE OLIVEIRA




[ID | S. Martinho, 12/019]