terça-feira, 29 de junho de 2021

O de Oitavos de final


Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e demais fomentadores
de pestilência moral? Que valor pode ter
uma metáfora sem preço, por brilhante
que seja, neste mundo de sementes apagadas
em lameiros de cimento? Tu não vês
o telejornal, Musa? Nunca ouviste falar
da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais,
julgas-te capaz de competir com traficantes
de desejos, decibéis e abraços? És capaz
de fazer rir um desempregado, de excitar
um espírito impotente? Consegues marcar
golos geniais como o Ricardo Quaresma,
proteger do frio as andorinhas, ir buscar
as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo para te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.


José Miguel Silva, Últimos Poemas,
Lisboa, Averno, 2017

domingo, 27 de junho de 2021

quinta-feira, 24 de junho de 2021

E de Encontro (II)


5.


Nunca separei um sorriso do amor.

Circula essa jornada confusa,
um afã não dito,
um amargo que muda


em ternura.

                    Tranquila vibração,
recôndita fugacidade, solta
o gemido que vai da língua à garganta,
semente de uma ave.

Enleia num alento o outro enleio.

O silêncio não precisa de provocar
o que não ouve, lá fora, na madressilva.

A glicínia a magnólia o cacilheiro
cada margem.

Um sorriso.

Joaquim Manuel Magalhães, "Homossexualidade",
in Telhados de Vidro n.º 4, Lisboa, Averno, Maio de 2005




[ID, Maio 016]