segunda-feira, 30 de abril de 2012

P de Paisagem Urbana


Da janela do trabalho.

domingo, 29 de abril de 2012

sábado, 28 de abril de 2012

P de Poética (XXI)

[…]

Agarro, pois, a vida entre as mãos, com tudo o que sei sobre ela, tudo o que podemos pressentir, o que devíamos ter visto, o que lemos, o passado, o presente, pouco futuro (nada nos faz divagar mais do que o futuro), tudo o que deveríamos saber, as mulheres que beijámos, o que apanhámos de surpresa; as pessoas, o que elas não souberam que sabíamos, o que elas nos fizeram; as falsas saúdes, as alegrias defuntas, as melodiazinhas que caem no esquecimento, o resto de vida que ainda escondem, e o segredo da célula ao fundo do rim, que quer funcionar bem durante quarenta e nove horas, não mais do que isso, e que depois deixará passar a sua primeira albumina do regresso a Deus… Sim… Sim… Estão a entender-me? A acompanhar-me? A perna disforme da priminha também lá deve caber, dobrada, e o navio com as velas desfraldadas a demasiados a ventos, que nunca mais termina a sua volta ao mundo com a sua carga de dólares velhos?.. É preciso amarrá-lo ao nosso sonho… Com o seu capitão que não quer ter ar de quem já usa óculos… Mas que toda a tripulação já experimentou, porque sabem que ele desconfia… o seu grumete beiçudo, com os dentes a cair, passa demasiado tempo na sua cabine… E a corda do enforcado, calafate, arrasta-se lá longe, atrás do cadaste, entre a espuma, longe, de onda em onda, dessas que perseguem o navio…

Enfim, tudo, mais ainda, tudo mesmo, tudo o que acreditámos, depressa, de passagem, que podia fazer viver ou morrer. […] É o bazar das canções mortas.

[…]


Louis-Ferdinand Céline, “Postface à Voyage au bout de la nuit”, 1933
[Trad. ID]  

P de Pássaros Anónimos (VII)

A propósito de uma história contada/ouvida ontem à noite,
sobre pássaros que frequentam cafetarias:



[Santa Martha, Abril 2012]


sexta-feira, 27 de abril de 2012

[...]
No jogo do homem, o instinto da morte, o instinto silencioso, ocupa decididamente um lugar importante, talvez a par do egoísmo. Ocupa o lugar do zero na roleta. O casino ganha sempre. A morte também. A lei dos grandes números trabalha a seu favor. É uma lei sem falhas. Tudo o que fazemos, de uma maneira ou de outra, acaba rapidamente por esbarrar com ela e por se transformar em ódio, em sinistro, em ridículo. Era preciso sermos dotados de um modo muito particular para falarmos de outra coisa para além da morte nestes tempos em que sobre a terra, sobre as águas, no ar, no presente, no futuro, nada mais existe. Sei que se pode ainda dansar no cemitério e falar de amor nos matadouros, o autor cómico mantém as suas hipóteses, mas é apenas um tapa-buracos.
[...]


Louis-Ferdinand Céline, "Hommage à Zola", 1933
[Trad. ID]

quinta-feira, 26 de abril de 2012

P de Paralelos



Lisboa, Abril 2012

T de Tratado de Pedagogia (XLVIII)

quem esperará em vão?

sítios: longas variações do corpo, traça a cuspo o círculo da cidade vazia, delimita vidros, retortas buriladas, jardins mínimos de begónias e terra humosa, reflexos sitiados, de onde vem a luz? como coagula iridiscente? e atravessa espelhos e desdobra labirintos? passeia com a mulher de verde, pausa de sempre, saiu do enorme sono anterior vibrátil, surge nas esquinas das ruas nas correntes de ar súbitas de verão na paz que sobrevive após a morte dos deuses, sinto-me tão bem nesta camisa branca e nestas calças de linho que poderia dizer que acabou de chover, se procuro o corpo é para nele me debruçar irreconhecido mais de mim que dos outros, e ele que no tempo anterior era pesado como os substantivos da infência gora leve aéreo pronto a morrer, olho os quinze anos nas margens das vogais abertas, dos espantos e das colunas às quais nos encostamos sempre para esperar, colunas onde recolhemos os olhares sentidos as fugas os reminiscentes campos, onde todas as interrogações foram postas e todas elas, mas todas, não abriram, antes o seco som da pólvora ou de minúsculas metralhadoras portáteis instrumentos malignos de coerência, já não posso estar parado, nem escrever os livros da glória, nem transmitir o saber todo íntimo de ter atingido as categorias definitivas do espírito, movo-me porque um minuto à secretária é o possível minuto de espera de alguém que se vai cansar e partir

nomes que se dizem ou soletram ou a medo nomes que talvez sejam a morte dos desejos esquecidos das enciclopédias das universidades

jardins de araucárias e meninas lassas em seus vestidos transparentes de chiffon e pássaros violentos na breve vagina e os inventários académicos a corroer o mundo

retortas onde espessos alquimistas dessorados esperam a mprte enquanto trémulos se aquecem na imagem laboratorial do sol e um cogumelo lhes irrompe do lábio inferior para que um adolescente o coma no futuro de faca e garfo
quando a viagem tende a ser a incisão do voo o homem berra para os horizontes de cartolina

pergunta
o menino à professora de trabalhos manuais: senhora, este é o azul do céu? este papel de lustro?

o homem diz: mãe
e pombos ancestrais cagam nas estátuas dos heróis


Rui Nunes, Os deuses da antevéspera,
Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1977

segunda-feira, 23 de abril de 2012

B de Biorritmo (CXXIX)

L de Levantar a cabeça (VIII)


Lisboa, Abril 2012



Copenhaga, Agosto 2006

domingo, 22 de abril de 2012

F de Fazer Fotografia - XIV b


Stanley Kubrick, "Shoe Shine Boys (On Fence)", 1947

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A BIBLIOTECA ESTÁ A ARDER



Para Georges Braque




Neva pela boca deste canhão. Era um inferno na nossa cabeça. Ao mesmo tempo é primavera na ponta dos nossos dedos. É o rasto de novo consentido, a terra em paixão, as ervas exuberantes.


O espírito também vibrou, como tudo.


A águia pertence ao futuro.


Qualquer acção que envolva a alma, mesmo que ela o faça inconscientemente, terá como epílogo um arrependimento ou um desgosto. É preciso aceitar isso.


Como me apareceu a escrita? Como uma penugem de pássaro sobre as vidraças, no inverno. Gerou-se logo na lareira uma batalha de tições que, até agora, ainda não terminou.


Macias cidades do olhar quotidiano, encaixadas entre outras cidades, com ruas traçadas só para nós, sob a asa de relâmpagos que respondem aos nossos cuidados.


Em nós tudo deveria ser festa jubilosa sempre que acontece algo que não previmos, que não podemos explicar, que nos vai falar ao coração pelos seus próprios meios.


Continuemos a lançar as nossas sondas, a falar a uma só voz, com palavras reunidas, e acabaremos por fazer calar todos esses cães, por conseguir que se confundam com a vegetação, observando-nos de olhos turvos, enquanto o vento lhes apaga as costas.


O relâmpago dura-me.


Só existe o meu semelhante, a companheira ou o companheiro que possa despertar-me do torpor, desencadear a poesia, atirar-me contra os limites do velho deserto para que eu o vença. Nada mais. Nem céu, nem terra privilegiada, nem coisas que nos façam quebrar.
Tocha ardente, só com ele danso.


Não podemos começar um poema sem uma parcela de erro em nós e no mundo, sem um pouco de inocência nas primeiras palavras.


No poema, quase todas as palavras devem ser utilizadas no seu sentido original. Algumas, ao separarem-se, tornam-se plurivalentes. Outras são amnésicas. A constelação do Solitário está tensa.

A poesia vai roubar-me a minha morte.

Porquê poema pulverizado? Porque no final da sua viagem até ao País, após a obscuridade pré-natal e a dureza terrestre, a finitude do poema é luz, dádiva do ser à vida.

O poema não retém aquilo que descobre; depois de o transcrever, perde-o logo. É nisso que reside a sua novidade, o seu infinito e o seu perigo.

O meu trabalho é um trabalho de ponta.

Nascemos com os homens, morremos inconsolados entre os deuses.

A terra que recebe a semente está triste. A semente, que vai arriscar tanto, está feliz.


Há uma maldição que não se parece com mais nenhuma. Pestaneja numa espécie de preguiça, tem uma natureza afável, mostra-nos um rosto de feições tranquilizadoras. Mas, sob esse disfarce, que impulso, que salto imediato para o seu fim! Provavelmente como a sombra em que se apoia é maligna, uma região totalmente secreta, conseguirá evitar uma denominação, fugir sempre a tempo. E desenha, no véu do firmamento dos mais clarividentes, parábolas bastante assustadoras.

Livros sem movimento. Mas livros que se introduzem com leveza nos nossos dias, e provocam queixas, abrem bailes.

Como dizer ainda a minha liberdade, a minha surpresa, depois de mil desvios: não há chão, não há tecto.

Às vezes a silhueta de um jovem cavalo, de uma criança distante, aproxima-se da minha testa como um batedor e salta a barreira da minha preocupação. Então, sob as árvores, volta a ouvir-se a nascente.

Queremos continuar desconhecidos perante a curiosidade daquelas que nos amam. Porque as amamos.

A luz tem uma idade. A noite não. Mas qual foi o instante que gerou esta fonte inteira?

Não ter várias mortes suspensas, como se cobertas de neve. Ter apenas uma, de boa areia. E sem ressurreição.

Detenhamo-nos junto dos seres que se podem separar dos seus recursos, embora não tenham nenhum ou quase nenhum recuo. A espera mergulha-os numa insónia vertiginosa. A beleza oferece-lhes um chapéu de flores.

Pássaros que confiais a vossa graciosidade, o vosso sono perigoso aos juncos, quando o frio chega, como nos parecemos convosco!

Admiro as mãos que preenchem, e, para emparelhar, para unir, o dedo que recusa o dado.

Às vezes apercebo-me de que a corrente da nossa existência é bastante obscura, uma vez que estamos sujeitos à sua faculdade caprichosa, mas o movimento fácil dos braços e das pernas, que nos poderia levar até onde seríamos felizes, na margem cobiçada, ao encontro de amores cujas diferenças nos enriqueceriam, esse movimento continua inacabado, declinando rapidamente a sua imagem, como uma bolha de perfume no nosso pensamento.

Desejo, desejo que sabe, só o conseguimos retirar agora de algumas soberanias verdadeiras, ornadas de chamas invisíveis, de correntes invisíveis, que, revelando-se passo a passo, nos fazem brilhar.

A beleza faz sozinha a sua cama sublime, constrói estranhamente a sua fama entre os homens, ao seu lado mas afastada.

Vamos semear juncos e cultivar vinha nas encostas, à beira das chagas do nosso espírito. Dedos cruéis, mãos cuidadosas, este lugar distraído é-nos propício.

Aquele que inventa, ao contrário daquele que descobre, não acrescenta nada às coisas, traz aos outros seres apenas máscaras, intermediários, um caldo de ferro.

Por fim a vida inteira, quando arranco a doçura da tua verdade amorosa ao mais profundo de ti!

Fiquem perto da nuvem. Vigiem de perto as ferramentas. Todas as sementes são odiadas.

A caridade dos homens em certas manhãs estridentes. No desassossego do ar em delírio, subo, fecho-me, insecto devorado, seguido e perseguindo.

Perante estas águas, de formas duras, por onde passam em ramos desfeitos todas as flores da montanha verde, as Horas casam com deuses.

Fraco sol de que eu sou a liana.


René Char, Les Matinaux, suivi de La Parole En Archipel
[Trad. ID]

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O de "Onde se lê gato" (VII)


[12/04/12]

T de Tempo Sem Tempo (VII)

CONCENTRAÇÃO



A mesa afasta o olhar da janela
A escopeta desmente o horóscopo
A meia engole o caminho
A sopa emboça o cansaço
O medo embota o juízo
que baralha a sentença
desanda o calendário
aleija o relógio e abre
abrupto
goelas de galo
nas manhãs de patíbulo


Fabio Weintraub, Baque,
Lisboa: Língua Morta, 2012



TRANSGREDIR



     Obedeçam aos vossos porcos que existem. Eu submeto-me aos meus deuses que não existem.

     Continuamos a ser pessoas de inclemência.


René Char, Les Matinaux, suivi de La Parole en Archipel,
Paris: Gallimard, 1962

[Trad. ID]

segunda-feira, 16 de abril de 2012

B de Biorritmo (CXXVIII)

J de (O) Jardim e a Casa (XVI)

BRILHO


St. Alexander, Girolamo Romanino


Era preciso que fosses
Jardim, rosa, campo santo
E que trouxesses no bolso
Uma navalha apertada



Raul de Carvalho, Poesia instante,
Lisboa: Ulmeiro, 1984

domingo, 15 de abril de 2012

B de Biorritmo (CXXVII)




The telegraph gave us hope
Before was the silence and the panic it brought
The sky was the blankest sheet
We drew lines upon it
so our thoughts could meet
through cables black and cold
we carry our intentions to bridge
and bring home
would it all be so clear
if the lines were erased
and the silence restored?



Boys of today write lines on walls
in the streets at night
in suburbans of cities with no name
is this destruction or just quiet protest
against loneliness



the car go lights in our lamps
they're weight is so heavy
and this is all we know
our message will need a ship
to travel across oceans
that can't otherwise be crossed



it underplate on the waves
and cautions the water so we can be safe
it underplate on the waves
then cautions the water so we can be safe

sexta-feira, 13 de abril de 2012

quinta-feira, 12 de abril de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XII)


ESPERA


Quando estou sem remédio
tudo jaz em torno ao berço
parado quieto seguro

As janelas não convidam
as lâminas desanimam
o gás nada promete

Em cada quina uma espuma
embota o gume
em cada gesto um arreio
rasga a vontade

Ninguém se atreve
no auge da tristeza
Sem luz ninguém se apaga

Porque estou assim
pensam que me conformo
mas um fósforo molhado
ainda pode secar


Fabio Weintraub, Baque,
Lisboa: Língua Morta, 2012





F de Falar para as paredes (XIII)


Hoje, entre livrarias e outros paralelos.


E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXII)

[…]

Mais do que forma do conhecimento a poesia é, acima de tudo, modo de vida – e de vida integral. O poeta existia no homem das cavernas, existirá no homem das idades atómicas: porque é parte irredutível do homem. Da exigência poética, exigência espiritual, as próprias religiões nasceram, e por favor poético a centelha do divino vive para sempre no sílex humano. Quando as mitologias desabam, na poesia é que o divino encontra refúgio; talvez mesmo o seu novo fôlego. E até na ordem social e no imediato humano, quando as Portadoras de Pão do cortejo antigo dão lugar às Portadoras de Archotes, na imaginação poética é que vai ainda incendiar-se a elevada paixão dos povos em busca de claridade.
[…]

Assim, por adesão total àquilo que é, em vossa intenção o poeta mantém-se ligado à permanência e à unidade do Ser. E a sua lição é de optimismo. Para ele, uma só lei de harmonia dirige todo o mundo das coisas. Nada ali pode acontecer que exceda, por natureza, a medida humana. As piores perturbações da história não passam de ritmos sazonais num mais vasto ciclo de encadeamentos e renovações. E as Fúrias, que atravessam a cena de archote erguido, só por um momento iluminam o vastíssimo tema em curso. De forma alguma as civilizações que amadureceram morrem das angústias de um outono, limitam-se a mudar. Só a inércia é ameaçadora. Poeta é o que rompe em nossa intenção o hábito.

[…]

E chega, ao poeta, ser a má consciência do seu tempo.



Saint-John Perse, Pássaros,
trad. Aníbal Fernandes,
col. “Cão Vagabundo”, Lisboa: Hiena, 1994

P de Perder a cabeça (V)


Jean Cocteau

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A MINHA MUSA
  
  
  
 
É mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
Furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece-me de casa
durante meses. Apetece-me
bater-lhe. Mas talvez a culpa
seja minha. Passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
É natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.

Amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
Meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (Mas tenho medo
das alturas, e ela sabe-o.
Aproveita-se da minha debilidade.)

Obriga-me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
É preciso ter estômago
para tanta solidão. Não admira
que muitas vezes a traia
com a Helena, com o bourbon dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no Largo do Viriato.
Mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.

É tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. Por ela, não havia
domingos nem feriados,
não havia verão. Era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
Marca-me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. Diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.

Fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
Diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
Mallarmé, levanta-se de noite
para me rasgar os poemas.
Não é fácil aturá-la.

Só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama-lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama-lhe
trigo, vê uma porta
e chama-lhe susto.
Às vezes pergunto-me
se não será parva.

A verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
Mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.
José Miguel Silva, Ulisses já não mora aqui,
Lisboa: &etc, 2002

terça-feira, 10 de abril de 2012

P de (The) Privacy of Rain (XXV)


Hoje: esperar por um autocarro à sombra da chuva.

T de Tratado de Pedagogia (XLVII) - ou R de Regresso ao Trabalho (talvez pela última vez)

[...] Essa experiência utilizei-
-a muitas vezes - e sempre com sucesso - nas minhas aulas
quando queria exemplificar como os acontecimentos
históricos tendem a reproduzir-se mas trazendo de cada vez
uma nota de imprevisível humor. Sem o que a vida
não seria mais do que rancor, fracasso e aborrecimento.


José Miguel Silva, "À maneira de Edgar Lee Masters I",
Ulisses já não mora aqui, Lisboa: &etc, 2002



M de (O) Mistério da Estrada de Sintra (III)

BALADA DE SETEAIS



Não há ninguém que baile para ti?
Ninguém que por ti diga a melhor
é sempre a primeira vez, não há
ninguém que ao semicerrar os olhos
te inclua dentro? Pouco importa,
iguais vão suceder-se os dias
como soldados num domingo
vitorioso. Não há ninguém que viva
para ti? Assim é como começaste.
Ainda te faltam coisas para descobrir,
pensa nisso, entre os dias encontrarás
o sossego que detenha a tua vida
e nessa altura que não baile
para ti, não passará de uma borra
no fundo do copo que bebes até ao fim.




- José Ángel Cilleruelo
(Averno)

domingo, 8 de abril de 2012

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.



Mário de Andrade

P de Pele (II)


[Baixa, 07/04/12]

sábado, 7 de abril de 2012


Gordon Cullen, Paisagem Urbana,
Lisboa: Edições 70, 2010, p.134

sexta-feira, 6 de abril de 2012

S de Solidão (ou C de Comunidade) XLIII



"Falar separa, também."
Albert Camus
 
    
        

     Quando acordei sem sentir o lado esquerdo, sorri. A perna arrastada, o braço caído, a dormência na cara: sempre me tinham dito que estava tudo na cabeça e agora esta anestesia imperfeita do lado do coração. O corpo a desistir finalmente a tempo, antes de mim.
     Depois vieram as pessoas à mesa. As perguntas. Os olhares inquietos. As conclusões demasiado apressadas para o corpo em greve. Os toques, as insistências, as pressões. E finalmente as palavras que saíam devagar mas que não conseguiam parar os olhares inquietos, os entreolhares, os toques, as insistências, as pressões. As palavras que só conseguiam parar as perguntas, porque saíam diferentes das perguntas que tinham na cabeça, diferentes também - percebia ainda mais devagar - das respostas que eu tinha na cabeça. Uma espécie de afasia que começara do lado do coração, como se tivessem cimentado a porta para a rua. De repente, sabia com o corpo todo por que razão silêncio é uma palavra impossível. Só o som da circulação parada no cimo da montanha-russa, o mal que continuava a sua teia à transparência da pele. Só. O grau zero da solidão, não passeada entre os outros, uma canção fria presa dento de mim.
     
     Durou uma manhã. Seguiu-se uma pequena morte: um enjoo do ar, uma sonolência agravada pela luz, depois o lado esquerdo como que apunhalado repetidamente pela tarde. As pessoas à volta da cama: as veladoras. Um sorriso ainda do lado direito, mas apenas por dentro. E o regresso novamente provocado, novamente puxado ao mundo. Dias e dias com o pensamento cartografado por máquinas e as reacções medidas na ponta de agulhas. Um grau de normalidade injectado para se ver melhor o contraste.
     E os olhares sempre inquietos. As conclusões sempre mais rápidas do que o corpo a acordar de uma queda em sonhos. As palavras como água inquieta a regressar após um corte. Sempre as palavras. Espessas, duras, de língua áspera. Minhas, mas não entre mim e os outros, não entre mim e o mundo. Minhas, por serem um sinal de nascença, por serem os outros, por serem o espaço de mundo entre nós. Minhas, por terem ficado à espera cá dentro, enquanto reparava, sem o poder dizer, que a morte era afinal a vizinha com quem me cruzava todas as manhãs nas escadas e trocava os bons dias, ou o cão triste na esquina da rua, no regresso do trabalho. A morte familiar. Sem susto. Sem ser a medida de todas as coisas, por estar já entre todas as coisas.
      
      A medida de todas as coisas, essa é a amizade. Ter um girassol a crescer na varanda de baixo e a tentar chegar ao meu andar, antes do final da primavera. Ter um arquipélago de seres para quem se ordena a nossa quotidiana páscoa, para quem se reserva as palavras pesadas, cosidas, arrumadas, limpas com que prestamos testemunho enquanto assistimos ao mundo desde a última fila.
     Os meus amigos sabem, exactamente por esta ordem: explicar que o meu coração tem quatro janelas incompletas, uma árvore a crescer lá dentro e alguém que ainda se recorda de como rezar; seguir as coincidências no caminho dos ciprestes; descobrir a doçura que só entego em contrabando e de que cor é para mim a liberdade; curar as estrelas e os pássaros que caem do céu como peças a mais do universo. Estes amigos, os meus, ensinam-me que, se não sonhar, morro. Lembram-me que há sempre outro rio mais fundo, mais rente ao início do mundo.
     E conseguem sobretudo pôr as mãos sobre o meu coração, à distância de uma noite inteira e de vários quilómetros de vida. Por isso é que nunca os deixo partir, mesmo quando têm de partir e o fio que nos prende se mistura definitivamente ao corpo, que às vezes me falha.
NA COMPANHIA DOS MONSTROS



     Tornou-se muito cedo evidente (desde a minha adolescência) que eu nascera para viver entre os monstros.
     Durante muito tempo pareceram-me terríveis, depois deixaram de ser terríveis e, após uma grande virulência, atenuaram-se pouco a pouco. Por fim, tornaram-se inactivos e eu podia viver serenamente entre eles.
     Era a época em que outros, ainda imprevisíveis, se começavam a formar e um dia se apresentariam a mim, activos e terríveis (pois, se eles iam surgir por os acharmos ociosos e sob controlo, quem é que podia imaginar que viriam mesmo um dia?), mas depois de terem enegrecido todo o horizonte, começaram também a atenuar-se e eu vivia entre eles em igualdade de alma, o que era uma bela coisa, sobretudo tendo ameaçado ser algo de tão detestável, quase mortal.
     Eles, à primeira vista tão imensos, infectos, repugnantes, adquiriam uma tal fineza de contornos que, apesar das suas formas impossíveis, quase pareciam fazer parte da Natureza.
     Era o tempo que tinha esse efeito. Sim. E qual era o sinal inequívoco do seu estado inofensivo? É muito simples. Já não tinham olhos. Lavados dos órgãos de detecção, os seus rostos, embora de forma monstruosa, as suas cabeças, os seus corpos agora incomodavam tão pouco como os cones, as esferas, os cilindros ou outros volumes que a Natureza apresenta nos seus rochedos, nas suas pedras e em muitos outros domínios.


Henri Michaux, 
Épreuves, exorcismes, 1940-1944
[Trad. ID]
AS MINHAS ESTÁTUAS



     Tenho as minhas estátuas. Os séculos legaram-mas: os séculos da minha espera, os séculos dos meus desencorajamentos, os séculos da minha indefinida, insufocável esperança fizeram-nas. E aí estão elas agora.
     Como antigas ruínas, já nem sempre sei o que representam.
     A sua origem é-me desconhecida e perde-se na noite da minha vida, onde apenas as suas formas foram preservadas do inexorável apagamento.
     Mas aí estão elas, e todos os anos o seu mármore endurece, embranquecendo sobre o fundo obscuro das massas esquecidas.


- Henri Michaux,
Épreuves, exorcismes, 1940-1944
  [Trad. ID]

quinta-feira, 5 de abril de 2012

B de Biorritmo (CXXVI)




[...]
We'll ride like writers ride
neither rich nor broke
we'll race through alleyways
in our tattered cloaks
[...]

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXI)

PLANO DE EVASÃO



Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite -

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.


Rui Pires Cabral
in Ladrador, Lisboa: Averno, 2012

quarta-feira, 4 de abril de 2012

terça-feira, 3 de abril de 2012

A PROPÓSITO DA PARTIDA DE UM POETA E UM COMBOIO DE PASSAGEIROS

 
Para Jerzy Lisowski

Ele não sabe
como será o seu último poema
nem
como será o primeiro dia
num mundo sem poesia

provavelmente estará a chover
haverá uma representação de Shakespeare
e sopa de tomate para o almoço

ou sopa de galinha com massa
uma representação de Shakespeare
e chuva

as musas não lhe garantiram
que no seu último sopro
iria proferir um pensamento inspirador
lúcido
mais luz ou assim

o mais provável
é que parta
tal como
um atrasado
comboio de passageiros
de Radomsko para Paris
via Zebrzydowice


Tadeusz Rózewicz
in They came to see a poet

[Trad. ID]


segunda-feira, 2 de abril de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XX)

Os poetas dignos desse nome recusam-se, como os proletários, a deixar-se explorar. A verdadeira poesia habita todo aquele que não se conforma com esta moral, a qual, para manter a sua ordem e o seu prestígio, só sabe construir bancos, quartéis, cárceres, igrejas e bordéis. A verdadeira poesia habita tudo aquilo que liberta o homem daquele bem terrível que tem a cara da morte. Está na obra de Sade, e de Picasso assim como na de Rimbaud, de Lautréamont ou de Freud. Está na invenção da rádio, na expedição do Celiuskin, na revolução de Astúrias, nas greves de França e da Bélgica.

Pode estar tanto na fria necessidade, a de conhecer ou comer melhor, como no sabor do maravilhoso. Há já mais de cem anos, os poetas desceram dos cimos onde julgavam encontrar-se. Vieram para a rua, insultaram os patrões, já não têm deuses, atrevem-se a beijar na boca a beleza e o amor, aprenderam as canções de revolta da multidão infeliz e, sem desfalecer, procuram ensinar-lhes os seus cantos.

Pouco lhes importam os sarcasmos e o riso. Já estão acostumados; mas agora têm a certeza de que falam por todos. Têm a sua própria consciência pelo seu lado.



Paul Éluard, "A Invenção Poética" (excerto)
in Franco Fortini, O Movimento Surrealista, trad. António Ramos Rosa,
Lisboa: Editorial Presença, 1980

domingo, 1 de abril de 2012

A de Abril - b *


"Chicks perch on the barrel of a shotgun while a young boy takes aim, on a chicken farm"
April 1938, Essex, England
Image by © Hulton-Deutsch Collection/CORBIS
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* Post com dedicatória.


José Carlos Fernandes / Luís Henriques, A Metrópole Feérica,
Lisboa: Tinta da China, 2008