quinta-feira, 29 de novembro de 2018

U de Último dia de aulas (ou S de "Stôra, podemos sair mais cedo?")


L'instituteur_ Non, je ne sais pas, je ne sais rien... Qu'est-ce qui reste à votre avis Monsieur Ernesto...

Ernesto_ Tout à coup, l'inexplicable... la musique... par exemple...


Marguerite Duras
in La pluie d'été (pp.113/114)

domingo, 25 de novembro de 2018

D de Do outro lado do espelho (II)


DESEJO DE COISAS LIGEIRAS


Jucal leve louro
como um campo de espigas
junto ao lago celeste

e as casas de uma ilha distante
cor de vela
prontas a zarpar -

Desejo de coisas ligeiras
no coração que pesa
como uma pedra
dentro de um barco -

Mas chegará uma noite
a estas margens
a alma liberta:
sem vergar os juncos
sem agitar a água ou o ar
partirá - com as casas
da ilha distante,
para um alto recife
de estrelas -


Antonia Pozzi, Morte de uma estação,
sel. e trad. de Inês Dias, Lisboa, Averno, 2012




[ID | Lisboa, 2012]

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

P de (The) Privacy of Rain (XXXVIII)


PALAVRAS COM ÁGUA


A chuva gosta de escrever. Imprime as suas obras sobre o vidro das janelas, na carroçaria dos automóveis. E quando cai sobre um papel ouve-se o ruído de prazer com que o pisa. Sabe traçar uma fenda na superfície, como fazia a velha tipografia, depois arredonda-a. E, sobretudo, se houver algo de escrito, desbota-o até conseguir apagá-lo. O que a chuva escreve prevalece sobre qualquer tinta. E no dia seguinte, quando o papel tiver secado, ficam gravados os seus sinais, uma iconografia quase cuneiforme que é secreta e que é também para sempre. 


[Trad. ID]




[ID | Coimbra, 13/05/12]

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O de "O mundo está escuro: ilumina-o" - XIX b


NUUR


                        para Patrícia Joana


    A pouca luz que tenho no rosto, provém do facto de ler, todas as madrugadas, um fragmento do Alcorão.
    Muito pouca luz, mas redonda.
    O meu corpo é anguloso, ossudo e imerso em trevas. Só quando caminho se acendem luzes, como o plâncton, à noite, nas margens do mar da Índia. Então, entre os meus passos, perpassam estrêlas.
    Se estou imóvel, porém, só o meu rosto se distingue. Nem eu próprio me vejo todo por fora, nem mesmo diante dum espelho, tal a profundidade dêste mergulho interior.
    Aqui respira-se melhor.
    Pode dizer-se o que se quiser.
    O rigor da poesia é ganhar esta Grande-Guerra-Santa com a nossa própria alma.

    Cada vez mais se me antolha evidente ser a vida uma preparação para a morte: lugar comum, onde todos nos sentamos.
    Há quem fique de pé, mas por pouco tempo.

                                                                     *

    A pouca luz que tenho no rosto, provém igualmente de um beijo teu.
    Um beijo muito núbil, cheio de castidade e desejo, num perfeito equilíbrio de suavidade religiosa.
    Um beijo inspirado por Deus.
    Agora, quando leio o Alcorão, de madrugada, a pequenina luz circular do meu rosto aumenta de diâmetro e ilumina o som do texto.
    Já não preciso do candeeiro aceso.


António Barahona, Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea,
Lisboa, Averno, 2011

O de "O mundo está escuro: ilumina-o." (XIX)

PARIS AT NIGHT



Três fósforos acesos um a um durante a noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O último para ver a tua boca
E a escuridão inteira para recordar isso tudo
Enquando te aperto nos meus braços.


- JACQUES PRÉVERT