E a tua ferida, onde está?
Pergunto onde fica, em que lugar se oculta a ferida secreta para onde foge todo o homem à procura de refúgio se lhe tocam no orgulho, se lho ferem? Esta ferida - que fica assim transformada em foro íntimo - é que ele vai dilatar, vai preencher. Sabe encontrá-la, todo o homem, ao ponto de ele próprio ser a ferida, uma espécie de secreto e doloroso coração.
Se observarmos o homem ou a mulher que passam com olhar rápido e voraz - e também o cão, o pássaro, uma panela - a velocidade do olhar é que nos mostra, ela própria e com rigor máximo, que ambos são a ferida onde se escondem mal sentem o perigo. O quê? Já lá estão, já os conquistou - deu-lhes a sua forma - e para ela a solidão: lá estão inteiros no retesar de ombros em que passam a concentrar-se, com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca, e contra a qual nada podem nem querem, pois dela é que sabem esta solidão absoluta, incomunicável - este castelo da alma - para serem a própria solidão.
Jean Genet, O Funâmbulo,
trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Hiena Editora, 1984
[Lisboa, 17/05/013]
O CIRCO
Venham ver, venham,
a minha oculta ferida.
Tem rebordo roxo
e paixão ao meio.
É bonita e quero-lhe muito.
É flor de passiflora à botoeira
da pele que subpulsa,
que repulsa,
meus audiovisuais que aguentam tudo:
minha náusea, meu coração-culpa.
Brinco enquanto finjo um outro assunto.
Rif-raf é um brinquedo de criança
ou nada quer dizer
senão imagem onomatopaica.
Diagrama, indica infecção
palustre de água-viva e memória
tão secreta que não mata.
Vê-se e não se vê
a minha oculta ferida.
Mas tem cruzes e espinhos.
No centro uma gota brilha
rocio
ou som murmurado
que se transmite sem pedir palavra.
A minha ferida sangra
como que entornada.
Venham ver, entrem,
que não se paga nada.
Ruy Cinatti, 75 Poemas,
org. Manuel de Freitas, Lisboa: Averno, 2014
1 comentário:
Oh!, que aos anos não me lembrava dessa maravilha do Genet. Tão bom.
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