quarta-feira, 31 de outubro de 2012

D de Dia de los Muertos (III)





*



CEMITÉRIO DO PÈRE-LACHAISE



No Père-Lachaise a solidão é um útero de regresso,
os mármores têm a aparência de leite cansado,
a eternidade é uma toupeira que dá de mamar aos seus mortos.
No Père-Lachaise há crianças albinas a mascar hera,
os corvos entesouram puxadores caídos de portas que ninguém conhece,
soam mais amargos os violinos de Enescu debaixo dos salgueiros.
Junto a Jim Morrison alguns cravos de outros tempos
ainda elevam vapores e descargas eléctricas.
Oscar Wilde é só musgo a rebentar a pedra.
Às seis da tarde um funcionário tranca a morte,
abre a cigarreira. Sumido entre o fumo talvez pense:
Que trabalho inútil viver. Quanto tempo perdido.
Uma roseira deixou os espigões abertos sobre Sadeq Hadayat.
Sentados nos seus ciprestes os anjos levantam âncoras.
O cemitério zarpa novamente e Paris é o Inverno.


Jesús Jiménez Domínguez
in Criatura n.º5, trad. de Luís Filipe Parrado, Outubro 2010



*



AUX MORTS



Cansados de haver manhã,
os corvos do Père Lachaise
pareciam dispostos a reocupar
as casas desiguais dos mortos.
Celebração ou abandono,
a esbaterem-se no rigor
de um mesmo nada, por entre flores
sem cheiro, vitrais partidos
e teias de aranha milenares.

São formas de beleza pouco aconselháveis,
uma resposta para a qual nos faltará
sempre a pergunta correcta
ou o desejo, sequer, de a encontrar.

Pois só duas pessoas saberão
- até ao fim do mundo -
o nenhum mas imperioso motivo
de colocar dois cravos sobre a terra gasta.

E a partir-se, por inépcia minha, aquele
branco que te quis lembrar num verbo
que conhece demasiado bem o futuro.


Manuel de Freitas, Intermezzi, Op. 25,
(Opera Omnia)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

C de Começar o dia com um livro novo (XIV)

O MUNDO NÃO PODE DORMIR
 
 
 
      Há hoje no mundo pouca gente que durma; as noites são mais longas, mais longos os dias.
     Em todos países, por essa Europa fora, em todas as cidades, em cada rua, cada casa, cada aposento, tornou-se mais curta e febril a tranquila respiração do sono; a época é de fogo, e como se fôra uma única noite de verão, pesada e abafadiça, cai sobre as nossas noites e perturba-nos os sentidos. Quantos, aqui e algures, habituados a deslizar entre o princípio da noite até de manhã na barca negra do sono - enfeitada com as rútilas e flutuantes bandeiras dos sonhos - ouvem agora à noite o tique-taque dos relógios, e vagueiam pelo tremendo caminho que vai desde o cair da sombra até ao aparecimento da luz, e sentem lá dentro o verme dos cuidados a roê-los sem cessar, a roê-los sem descanso, até que o coração adoece e fica em ferida. Toda a humanidade tem agora febre de dia e de noite; esse terrível, pavoroso estar desperto transparece nos sentidos sobreexcitados de milhões de criaturas: o destino penetra, invisível, através de milhares de portas e janelas e expulsa o sono; de cada leito afugenta o esquecimento. Há pouco quem durma no mundo; são mais longas as noites, mais longos os dias. Ninguém pode estar sozinho consigo e o seu destino; cada um de nós espreita para a distância. [...]
 
 
Stefan Zweig, O Mundo não pode dormir e outros contos escolhidos,
Porto: Livraria Civilização, 1940

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O PROBLEMA DO PÚBLICO



     Em França, não temos tanto um problema da arte, mas sim um problema do público. Em todo o lado essa necessidade de "arejar o quarto", de encontrar um pouso fresco no travesseiro, de responder a perguntas misteriosas, obriga os artistas a vencer a preguiça do hábito, a criar coisas novas ou a apresentar velhos problemas sob um ângulo inesperado. [...] E o público? Será que o público quer sair desse sono que a novidade agita? [...]
     Refiro-me a um público que aceitámos, há muito, como sendo o nosso. Esse famoso público de elite ao qual entregamos sem reservas o melhor de nós mesmos e que pensa sempre que lhe preparámos uma armadilha ou queremos troçar dele. 
     Ao anunciar na rádio que ia colaborar neste jornal, contei a minha surpresa aquando de um grande jogo entre a equipa canadiana e a equipa inglesa de hóquei sobre o gelo. No momento em que o jogo punha as duas equipas em confronto de tal modo que parecia estarmos a assistir à luta por uma alma entre anjos e demónios no reino do silêncio e da velocidade, em suma quando o espectáculo se tornou uma fascinante questão de vida ou de morte, vimos os camarotes e os lugares mais caros esvaziarem-se, enquanto os lugares mais baratos se inflamavam até aos gritos. O nosso público, o público de elite, o público com que tantos maus métodos nos obrigam a contar, mostrava-nos a frieza desatenta que concede à beleza sempre que ela não se apresenta sob uma forma que possa pôr em causa a sua inteligência. 
     Desporto... aborreço-me... vou-me embora. Um poeta... aborreço-me... fico. 
     Infelizmente, o problema continua por resolver até nova ordem. Este público de "adultos", este público que perdeu a sua infância e que por vezes a procura às escondidas no circo Médrano, é o público que paga e que paga sobretudo o luxo de julgar e matar com a desfaçatez do imperador quando condenava com um gesto do seu polegar um dos gladiadores do espectáculo. 
     Como atingir as massas? [...]


Jean Cocteau

M de Música para os meus olhos (XXXIV)



in Answering Back - Living poets reply to the poetry of the past, 2008


domingo, 28 de outubro de 2012

R de Revisões da matéria dada - V c


EPÍLOGO A UM FILME
DEMASIADO TARDE



     Um dia em que perguntei a Raimu porque é que ele nunca ia ver os seus filmes, respondeu-me que já não os podia aperfeiçoar e que isso o deixava doente.
     Eis o drama das máquinas. Atraem-nos. Devoram-nos. Fixam-nos.
     Durante A BELA E O MONSTRO, o simples trabalho manual esvaziava-me a cabeça e impedia-me de me criticar. Depois, é a ordem da desordem, a desordem da ordem, uma massa onde o olhar se afunda e que anquilosa o espírito crítico. Impossível corrigir, a menos que se regresse ao estúdio, se reconstruam os cenários, se reúnam os artistas dispersos.
     Foi durante o festival de Cannes que encontrei o verdadeiro fim do meu filme. É certo que este novo fim obrigaria a refazer todas as imagens precedentes. Não passa, pois, de um sonho. Posso apenas sentir-lhe a falta ao acordar.
     A minha equipa empenhara todo o seu esplendor no papel do Monstro. Quando Jean Marais se transforma em Príncipe Encantado, ela já não tinha mais nada a dar. Por isso o público ama o Monstro e sente a sua falta. Prefere a lagarta à borboleta em que ela se transforma.
     Precisava de outro tipo de fim. O Monstro, morrendo de amor, deveria implorar à Bela que fizesse a confissão que lhe permitiria reviver como Príncipe Encantado. A Bela confessaria de todo o coração, mas o Monstro pedira novamente uma confissão que surgisse por si só. Além disso, a Bela não quer ir contra o que sente. Esta transformação não lhe agrada; não a deseja. E o milagre não funciona. E o Monstro não se transforma. E morre.
     A Bela fica sozinha no mundo, de luto pelo seu Monstro. Resta-lhe apenas a memória de uma aventura extraordinária. Não quererá príncipe, nem marido, nem muitos filhos.
     O conto perderia a sua exactidão e o seu conformismo relativamente aos contos de fadas que quis seguir. Mas ganharia em humanidade.
     Infelizmente, como o Monstro, posso apenas dizer: “É demasiado tarde.”


Jean Cocteau, Le foyer des artistes,
Paris: Librairie Plon, 1958

"[...]
 - E a literatura? - perguntou ele por fim.
 - Parei. Não me sinto de momento capaz de prosseguir. Não consigo encontrar o elo harmonioso entre a verdade e as ilusões que são necessárias para fazer arte sem denunciar as lacunas - sabe, como uma costura mal alinhavada. [...]" 


Lawrence Durrell, Clea

sábado, 27 de outubro de 2012

(defino "homem" como um poeta conspirando perpetuamente contra si próprio.)

Lawrence Durrell, Clea

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

LEPRA



A poesia tão igual a uma lepra!
................................................


E os poetas na leprosaria
vão vivendo
uns com os outros,
inspeccionando as chagas
uns dos outros.



Jorge de Sena, Perseguição
Lisboa: Edições Cadernos de Poesia, 1942

P de (The) Privacy of Rain (XXXVI)

 
Ontem, ao chegar ao trabalho.
 
POESIA
 
 
 
Eu também não gosto dela.
          Ao ser lida, porém, com um total desprezo, descobre-se
          apesar de tudo que o genuíno aí tem o seu lugar.
 
 
Marianne Moore
[Trad. Maria de Lourdes Guimarães]



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

U de "Uma arte"


A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias de intenção
de ser perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar. 

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava 
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar. 

Perdi duas cidades encantadoras: E, mais vastos ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

- Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente. É evidente
que a arte de perder não é muito difícil de se dominar
mesmo que nos pareça (toma nota!) uma calamidade. 


Elisabeth Bishop
in Poemas de Marianne Moore e Elisabeth Bishop
trad. de Maria de Lourdes Guimarães,
Porto: Campo das Letras, 1999

S de Sense of Snow - VIII b

I.
CEGO POR VONTADE E POR DESTINO



PORQUE TUDO É IGUAL E TU SABES,

chegaste à tua casa, e fechaste a porta
com o mesmo gesto com que se tira um dia,
com que se arranca a folha atrasada do calendário
quando tudo é igual e tu sabes.
Chegaste à tua casa
e, ao entrar,
sentiste a estranheza dos teus passos
que já soavam no corredor antes de chegares
e acendeste a luz para voltares a comprovar
que todas as coisas estão exactamente colocadas como estarão dentro de um amo;
e depois
tomaste banho, respeitosa e tristemente, do mesmo modo que um suicida,
e olhaste para os teus livros como as árvores olham para as suas folhas,
e sentiste-te só,
humanamente só,
definitivamente só porque tudo é igual e tu sabes. 


[...]


SIM, CHEGUEI À MINHA CASA, CHEGUEI, POR FIM, À MINHA CASA,
e agora é a mesma coisa de sempre,
a mesma nogueira diária,
os quadros que ainda não tive tempo de pendurar e estão sobre a mesa que a minha irmã cobriu de folhos,
a madeira que dói,
e a pequena luz desabitando a nova habitação,
e a pequena luz que é como um vazio na penumbra,
e o copo para ninguém
e o punhado de sonhos,
e as estantes,
e estar sentado para sempre.
Sim, voltei da rua; estou sentado;
a neve já começa a ser bastante
mas continua a cair,
continua tudo a cair, continua a tornar-se igual,
continua a tornar-se fim,
continua a cair,
continua a cair tudo o que era Europa, o que era meu e tinha chegado a ser mais importante do que a vida,
o que nasceu de todos e era como uma fresta de luz entre a minha carne,
continua a cair,
continua a cair tudo o que era limpo,
o que já estava livre,
o que já estava indolor à conta da vida,
continua a cair,
continua a cair tudo o que era humano, certo e frágil
à semelhança de uma menina de seis anos que chorasse no sono,
continua a cair,
continua a cair tudo,
como uma aranha que tu visses cair,
que tu visses cair sempre,
que tu próprio visses,
tu, tristemente próprio,
que tu visses cair até te tocar na pupila com as suas patas felpudas
e aí a visses toda,
toda solteiramente a ser aranha,
e depois a sentisses penetrar no teu olho,
e depois a sentisses caminhar para dentro,
para dentro de ti caminhando e ocupando-te,
ocupando-te de aranha,
e perceberás que fazias parte do seu caminho porque cegavas dela,
e mesmo que depois a sentisses igual,
igualmente quebrada
e mesmo que…

– Boa noite, senhor Luis! –


[...]


Luís Rosales, La casa encendida, 1988
[Trad. ID]

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A de "até que os fios do coração" (XV)


[Sintra / Outubro 2012]

To Women, As Far As I'm Concerned




The feelings I don't have I don't have.
The feelings I don't have, I won't say I have.
The felings you say you have, you don't have.
The feelings you would like us both to have, we 
 neither of us have.
The feelings people ought to have, they never have.
If people say they've got feelings, you may be pretty
 sure they haven't got them
So if you want either of us to feel anything at all
you'd better abandon all idea of feelings altogether.
 


D. H. Lawrence
in Answering Back - Living poets reply to the poetry of the past, 2008




segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O de Outono (X)



Answering Back - Living poets reply to the poetry of the past,
org. Carol Ann Duffy, Londres: Picador, 2008
 
"Enganamo-nos sempre duas vezes sobre aqueles que amamos: primeiro a favor deles, depois contra eles."

Albert Camus, La mort heureuse (1971)

E de Espera (XXIV)


[Sintra, 13/10/12]
 
[...] O chamado acto de viver não passa de um acto de imaginação. O mundo - que sempre tratámos de Mundo "exterior" - só se revela pela introspecção! Enfrentando este paradoxo cruel, mas necessário, o poeta verifica que lhe crescem cauda e orelhas, para melhor nadar contra as correntes da estupidez. O que parece ser um acto arbitrário de violência é precisamente o oposto, porque invertendo assim o processo ele une a corrente desorientada e apressada da humanidade ao calmo, tranquilo, imóvel e inodoro plano de onde provêm os seus móbeis e a sua essência. (Sim, mas é doloroso descobrir isto!) Se ele devesse abandonar o seu papel, toda a esperança de encontrar um ponto de apoio na superfície escorregadia da realidade ficaria para sempre perdida e tudo o que existe na natureza desapareceria! Mas este acto, o acto poético, tornar-se-á desnecessário quando cada um o puder realizar por si próprio. E o que os impede, perguntas tu? Bem, todos nós tememos naturalmente abandonar a nossa lastimável moralidade racionalizada - e o salto poético que eu preconizo fica justamente do outro lado da barreira. Aterra-nos simplesmente porque nos recusamos a reconhecer em nós próprios as horríveis goteiras que ornamentam os paus totémicos das nossas igrejas - assassinos, mentirosos, adúlteros e assim por diante. (Uma vez reconhecidas, as máscaras de cartão desvanecem-se.) Quem ousa o enigmático salto na realidade heráldica da vida poética descobre que a verdade possui a sua própria moralidade específica! Não mais se torna necessário usar funda. No interior da penumbra desta espécie de verdade a moralidade é desprezível, posto que não passa de um dado, uma parte da coisa, e não simplesmente um travão, uma inibição. Existe para ser vivida e não para ser pensada. [...]
 
 
Lawrence Durrell, Clea,
Lisboa: Editora Ulisseia, 1961

domingo, 21 de outubro de 2012

S de "Semantics won't do" (V)

T de Tempo Sem Tempo (XIV)

[...] Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca de mais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflecte-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra. Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me conhecesse.
No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos prédios, entardece um pouco mais a hora indefinida.
Cai leve, fim do dia certo, em que os que crêem e erram se engrenam no trabalho do costume, e têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência. Cai leve, onda de luz que cessa, melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa que entra no meu coração. Cai leve, suave, indefinida palidez lúcida azul da tarde aquática — leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.


Bernardo Soares,
Livro do Desassossego

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

T de Tratado de Pedagogia (LVII)



De New York (1898) até São Miguel (2012)

S de S.T.T.L.


"[...]

e ficas de novo sozinho
na solidão que começa
[...]"




Manuel António Pina
in O pássaro da cabeça, capa e ilustrações de Maria Priscila,
Lisboa: A Regra do Jogo, s/d

P de (The) Privacy of Rain - XXXIV b


[Lisboa, 17/10/12]
 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

P de (The) Privacy of Rain (XXXIV)


[Lisboa, 17/10/12]
 

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera" (II)

SERÁ SEMPRE MEU AMIGO



Será sempre meu amigo não aquele que na primavera
vai para o campo e se esquece entre a festa azul
dos homens que ama, e não vê o couro velho
por trás da nova pelagem, mas sim tu, verdadeira

amizade, peão celeste, tu, que no inverno
à luz da aurora, deixas a tua casa e começas
a andar, e no nosso frio encontras abrigo eterno
e na nossa profunda secura a voz das colheitas.


Claudio Rodríguez
[Trad. ID]


L de (A) Luz da Sombra (XXX)

 
 
[Sintra, 13/10/12]
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

 
 
[Sintra, 13/10/12]
 

S de "Semantics won't do" (IV)


domingo, 14 de outubro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XXIX)

 
 
[Sintra, 13/10/12]
 
Agora somos o campo
e as linhas que o cercam
tecidas pelo eco
de um prado adormecido.

Agora - sempre o soubemos -
há um jardim fechado, um pássaro
caindo
no escuro nó do sofrimento.


José Carlos Soares, Do Lado de Fora,
Lisboa: 50 KG, 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

O de Outono (IX)

 
 
[Sintra, 13/10/12]
 
"Um voto arrasta consigo uma constelação de disposições motoras e espirituais elementares, isto é, fazer um voto implica uma palavra proferida entre iguais ou uma palavra silenciosa pertença do foro íntimo, mas, seja como for, implica sempre esse compromisso com a palavra que lança as suas sombras sobre o momento seguinte, dirige a conduta, prefigurando continuamente os contornos da memória que todo o futuro contém. Por isso fazer um voto exige uma palavra proferida e alguém que a escuta - mesmo que seja um ouvinte interior, invisível - e a toma como palavra dada."


Maria Filomena Molder

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XXVIII)

 
 
[Sintra, 12/10/12]
 

T de Tratado de Pedagogia (LVI)

Que faria se hoje fosse professor de Filosofia?
 
Jean-Paul Sartre: Perguntaria aos estudantes de que é que gostariam que falássemos e se queriam que eu estivesse presente. Caso não quisessem no curso, não o faria. Apoiá-los-ia totalmente na sua luta. Procuraria, sobretudo, fazer o que eles já não conseguem devido ao isolamento a que foram votados: explicar para o exterior que não pequenos-burgueses niilistas, mas, simplesmente, jovens prestes a cair na armadilha e que recusam um ensino de molde a realizar homens servis. Explicaria também o sentido profundo da manobra Faure: substituir a ditadura dos pequenos régulos do saber, professores acomodados à sombra dum poder caduco, por uma aparente ligação de disciplinas e por um trabalho colectivo, ilusões cuidadosamente acarinhadas para esconder a "modernização" da Universidade em função doss monopólios capitalistas cujas exigências, anónimas, ao nível de região e de nação, já não aparecem como interesses privados, mas como a ditadura da "razão".
 
 
In Juventude e Contestação,
Lisboa: Publicações D. Quixote, 1969


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

S de "Semantics won't do" (III)




Sou um homem comum
Qualquer um
Enganando entre a dor e o prazer
Hei de viver e morrer
Como um homem comum
Mas o meu coração de poeta
Projeta-me em tal solidão
Que às vezes assisto
A guerras e festas imensas
Sei voar e tenho as fibras tensas
E sou um
Ninguém é comum
E eu sou ninguém
No meio de tanta gente
De repente vem

Mesmo eu no meu automóvel
No trânsito vem
O profundo silêncio
Da música límpida de Peter Gast
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Peter Gast
O hóspede do profeta sem morada
O menino bonito Peter Gast
Rosa do crepúsculo de Veneza
Mesmo aqui no samba-canção
Do meu rock'n'roll
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Sou um homem comum

P de Paisagem urbana (VI)

 
 
Ilustração
em
Jean-Paul Sartre, L'Engrenage, Lausanne: La Petite Ourse, 1953
 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

L de Levantar a cabeça (XI)

 
 
[Lisboa, 10/10/12]
 

S de "Semantics won't do" (II)


CASIDA VII
DE LA ROSA





La rosa,
no buscaba la aurora:
casi eterna en su ramo,
buscaba otra cosa.

 
La rosa,
no buscaba ni ciencia ni sombra:
confín de carne y sueño,
buscaba otra cosa.

 
La rosa,
no buscaba la rosa:
inmóvil por el cielo
buscaba otra cosa.

 


Federico García Lorca
(na voz, claro, de Chavela Vargas)

 
 
 
 
[Santa Cruz, Setembro 2012]
 

S de Solidão (ou C de Comunidade) - LI

"- Só depois de viver mais ou melhor, conseguirei a desvalorização do humano - dizia-lhe Joana às vezes. Humano - eu. Humano - os homens individualmente separados. Esquecê-los porque com eles minhas relações apenas podem ser sentimentais. Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos, "fraternidade", "justiça". Se elas tivessem um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo. Seriam a condição e não o facto em si. Porém terminam ocupando todo o espaço mental e sentimental exactamente porque são impossíveis de se realizar, são contra a natureza. São fatais, apesar de tudo, no estado de promiscuidade em que se vive. Nese estado transforma-se o ódio em amor, que nunca passa na verdade de procura de amor, jamais obtido senão em teoria, como no cristianismo.
[...]
- É difícil tal desvalorização do humano - continuava -, difícil fugir dessa atmosfera de fracasso de revolução - a adolescência -, de solidariedde com os homens na mesma impotência de conseguir. No entanto como seria bom construir alguma coisa pura, liberta do falso amor sublimizado, liberta do medo de não amar... Medo de não amar, pior do que o medo de não ser amado..."


Clarice Lispector

terça-feira, 9 de outubro de 2012

N de Natureza morta (II)

"A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo. Refrescavam-na de quando em quando, botavam um pouco de tempero, o suficiente para conservá-la um pedaço de carne morna e quieta. "
 
 
Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem,
Lisboa: Livros do Brasil,s/d

W de Wild is the Wind (V)

 
 
[São Miguel, Agosto 2012]
 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O de "O mundo está escuro: ilumina-o." (XXV)

W de "Whereas I am merely in disguise"

"Na minha vida não há evolução; o que há é uma permanente fuga para a frente. Passei décadas a fugir para mim mesmo, e a sensação é de nunca ter chegado à meta; o meu "eu" anda sempre dois ou três passos à minha frente.
Na adolescência gostava de pensar que ainda não tinha nascido; estava à espera de ser maior de idade para me despejar na minha pessoa verdadeira. Para me ocupar e para me ser. Esse espaço continua de algum modo vazio; a inconclusa fuga circular continua.
[...]"


Roger Wolfe

sábado, 6 de outubro de 2012



[06/10/12]
 

F de Flor Suficiente (XXIV)

 
 
[Pelos caminhos da manhã, 05/10/12]
 

E de Espera (XIV)

[...]

Às vezes não há nada a dizer. Ou então há, mas o momento não é oportuno. As pausas e os tempos mortos são tão importantes como os períodos de produção. A curiosidade contemplativa e o silêncio ajudam-te a manter os olhos e os ouvidos abertos, para se que vá filtrando por eles o material. A escrita é uma forma de olhar e uma forma de escutar. A escrita é uma forma de estar no mundo. Ou seja: uma forma de viver, de respirar. E de esperar.
Vale tudo para alimentar a máquina. Um escritor está sempre a trabalhar. Tem os seus registos, os seus arquivos, o seu processo mental. Há coisas que usará conscientemente, e outras que pensa ter esquecido, mas que irão aflorar, mais cedo ou mais tarde, no que escrever. O escritor não sabe o que é o desperdício. A sua existência é um exercício permanente de armazenamento e reciclagem. Nada nem ninguém se pode considerar perdido ou a salvo depois de entrar em contacto com ele. Para o escritor não existe lixo. Só existe combustível.
 
[...]
 
 
 
Roger Wolfe
 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

M de "My house, I say" - b


 
[05/10/12]
 



L de Longe da aldeia - b

ROBERT WALSER
 
 
 
De sapatos novos,
aí vai o sacristão,
como se resplandecesse o dia,
e o jardineiro
varre o caminho de saibro
como se alisasse
a memória,
mas não irão pôr ordem
no tempo antes do inverno,
lançam os iscos
ao ar e dizem
que os pássaros são peixes.
 
Regressas,
mais pesado,
às casas que nunca
partilharam contigo
uma infância,
 
na aldeia
ninguém te conhece
 
no olho
da betoneira
giram os céus
dilacerados.
 
 
Jürg Beeler
[Trad. João Barrento]
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O de "Oh! qu'ils sont chers, les trains manqués/ Où j'ai passé ma vie à faillir m'embarquer!..." - c



[Lisboa-Santarém, 04/10/12]
 

C de Chocolate Jesus (V)

 
 
Terminar o dia com uma fatia de relicário, em Santarém.
 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

M de Música para os meus olhos (XXXIII)



 
"Menina calçando a meia
[Estufa-Fria, 1966]",
de Inês Dias
 
pela mão de António Barahona.
 

O de Outono - III b



Egon Schiele, "Árvore de Outono agitada pelo vento", 1912



terça-feira, 2 de outubro de 2012

S de Santa Cruz (X)

 
 
 
 

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXVI)

LISBOA (3)



imaginaste um país imóvel devorado pelo sol
e o arrepio do canto espalhou-se pelas ruas 
onde o tempo passa lento e branco em direcção
a outro tempo igual
 
ao fundo do restaurante o olhar preso em ti
da dama do charuto - café flor do mundo
encruzilhada onde se dorme frente à europa
apercebida como uma sombra que se afunda
nas veias dos arrumadores de carros
 
imaginaste que em ti permaneceria
esse barulho metálico de continentes abandonados
enfim
ontem foi o último dia
em que conseguiste calçar-te - essa guerra
que te deixou por sarar
um túnel de veludo ensanguentado na cabeça
 
 
Al Berto

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

 
 
[Bairro Alto, 28/09/12]