[ID, Fim de ano 2016]
sábado, 31 de dezembro de 2016
sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
P de Poética (LIX)
ESCREVER
Ficas frente à parede, abraças a cal. Dizem que queima.
José Amaro Dionísio
in Às Escuras (com Helder Moura Pereira, Fátima Maldonado e Fernando Cabral Martins), Lisboa, 100 Cabeças, 2016
[ID, Lisboa, 03/016]
domingo, 25 de dezembro de 2016
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
C de Coração arquivista
[ID, 'Pelos caminhos da manhã', 11/016]
SEIS RECOMENDAÇÕES
Que idade tem esta sombra
Não lhe toques a carne
Concentra-te na superstição
Arrepio do pensamento
Prepara um chá, não arrastes a cadeira
Os nomes são ditos para dentro
Assoa-te, tira a cera dos ouvidos
Recordas Afrodite no wc?
Não adormeças no carril
O destino não tem ramal
Desliga a luz de cabeceira
E dorme para o lado que é teu
Nunes da Rocha, Óculos sujos, fígado gordo,
Lisboa, & etc, 2013
sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
quinta-feira, 8 de dezembro de 2016
E de Estudos literários comparados (II)
A Terra precisa tanto de mais parques de estacionamento
como nós precisamos de mais remendos de asfalto
implantados no rosto e nos órgãos genitais
para que minúsculos discos voadores
do Planeta dos Germes Extraterrestres
possam estacionar em nós como as moscas
que E. Dickinson ouviu zumbir
à volta da sua cabeça quando morreu.
Hakim Bey (trad. Inês Dias)
in Cão Celeste n.º4, Lisboa, Novembro de 2013
*
I heard a Fly buzz – when I died –
The Stillness in the Room
Was like the Stillness in the Air –
Between the Heaves of Storm –
The Eyes around – had wrung them dry –
And Breaths were gathering firm
For that last Onset – when the King
Be witnessed – in the Room –
I willed my Keepsakes – Signed away
What portions of me be
Assignable – and then it was
There interposed a Fly –
With Blue – uncertain stumbling
Buzz – Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –
- EMILY DICKINSON
Libellés :
"Porque agora vemos como por espelho",
Cão Celeste
quarta-feira, 23 de novembro de 2016
M de Mesa de Amigos (X)
IV.
Mulher, casa e gato.
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.
[...]
Herberto Helder, Ofício Cantante,
Lisboa: Portugália, 1967
J de (O) Jardim e a Casa (V)
PROPORÇÃO
No céu há uma lua e estrelas,
E no meu jardim há mariposas amarelas
Agitando-se em torno do arbusto de azáleas brancas.
Amy Lowell (trad. de Miguel Martins)
in Telhados de Vidro, nº 14, Lisboa, Averno, 2010
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
sexta-feira, 11 de novembro de 2016
B de Biorritmo - LXXI b
LEONARD COHEN, 1979
Era bem claro, nessa noite,
o quanto a sua música
se afastava de "other forms
of boredom advertised as poetry",
denúncia que se mantém válida.
Não serão bússolas duradouras
- tudo, enfim, falece -,
mas são palavras que nos protegem
da avalanche dos dias e dos meses,
destas poucas horas a que chamamos nossas.
Uma maneira de voltar a morrer?
Talvez,
quando até nas cinzas encontramos lume.
Manuel de Freitas
in pequena morte: poemas, Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2008
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
V
A última vez que te encontrei foi diante do Banco Qualquer Coisa. Verificavas o preço das acções. Elas baixaram, não há dúvida. Talvez isso prejudique o teu futuro na América e até mesmo a tua actual capacidade para os estudos. És fraco e não podes impedi-lo. Se fosses resoluto poderias ordenar a um dos responsáveis: "sobe-me essas acções, badameco!"
Não confio já nos santos ou nos poetas e muito menos nos heróis.
Tudo é agora uma questão de mais ou menos brutalidade, de maior ou menor capacidade de matar. Impunemente - é preferível.
As acções baixam - não há dúvida.
Manuel de Castro, "Hans e a mão direita"
in GRIFO - Antologia de inéditos organizada e editada pelos autores, 1970
[Guimarães, 2/08/013]
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
S de Solidão (ou C de Comunidade) II
ANUNCIAÇÃO
- segundo Fra Angelico
Ele veio do jardim, sem deixar
nem sombra, nem pegada sobre o orvalho.
Os olhares de ambos sustêm-se no ponto
de equilíbrio: tudo conduzindo
a este momento, tudo se afastando.
Uma palavra lançará a semente
da vida e da morte,
o ensombrar desta rapariga
por umas trevas emplumadas.
Mas ainda não: agora ainda não.
Como recordará ela o silêncio
desse interminável momento?
Ou o final, quando tudo começou -
a primeira de sete alegrias
antes das sete dores?
Ela recordará a canção a seguir
porque é apenas humana.
Um dia
acordará com asas, ou acordará
e descobrirá que elas desapareceram.
Robin Robertson, Hill of Doors,
Londres: Picador, 2013
[Trad. ID]
«HAVERÁ UMA BELEZA QUE NOS SALVE?»
Não, não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva. E a bondade manifesta-se, por vezes, no meio da maior fealdade. Explico-me. Uma pessoa capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre. Quando visitamos um museu com obras belíssimas, como o Louvre ou o Prado, podemo-nos esquecer de que as pessoas, os visitantes e os funcionários que estão lá connosco, são obras mais belas do que as mais belas obras expostas que andamos a ver. Um artista torturado pela beleza que consegue, ou que não consegue, dar ao que pinta e que se autodestrói está equivocado. Seria preferível deixar de pintar ou pintar obras medíocres. Como dizia o meu avô materno, que era médico, «mais vale burro vivo do que sábio morto». Se a busca da beleza nos impede de viver, então há é uma beleza que nos perde. E há.
Penso que não nos devemos enganar sobre a beleza. Se a nossa obra artística, ou outra, não implica a renúncia às coisas inúteis e a partilha, então é bastante inútil. E as coisas inúteis, para uma poetisa, são o desejo de escrever obras perfeitas e o de ser reconhecida pelos seus pares. Roubei à Irmã Emmanuelle a expressão «renúncia às coisas inúteis e partilha» («renonce aux choses inutiles et partage», in Famille chrétienne,Numéro hors série, été 2004, p. 6). Se não há partilha, o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si.
Os artistas são, às vezes, muito egoístas. É verdade que as suas obras, apesar disso, podem comunicar --mas será involuntariamente? -- bons sentimentos. A arte está cheia de ódio, de maus sentimentos. Parece que estou a dizer mal da arte e não queria fazer isso.
No Natal, uma amiga mandou-me um cartão de boas festas da Unicef com um Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Tenho-o em exposição no meu quarto e, quando quero rezar, olho para ele. Mas não sou contemporânea de Fra Angelico. Não posso tomar café e tagarelar com ele nos cafés como posso fazer com a amiga que me enviou o anjo dele pelo Correio. Por isso o Anjo da Anunciação de Fra Angelico, que é tão bonito, pode também ser doloroso. Fra Angelico já morreu. E não é a beleza do anjo de Fra Angelico que me garante que Fra Angelico ressuscitará.
Um poema de Rimbaud está cheio de violência. Há muita beleza na expressão dessa violência. E isto é terrível. Preferia que Rimbaud não estivesse ferido a ponto de escrever daquela maneira? Preferia. Mas não posso dizer isto assim.
A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e dourado. É verde e azul. Mas, ao escrever assim, parece-me que estou a evocar o poema de Rimbaud intitulado «Voyelles». A arte é um modo de lidar com a ausência. E por isso é tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da presença.
Adília Lopes, Le Vitrail La Nuit/A Árvore Cortada,
Lisboa: &etc, 2006
terça-feira, 1 de novembro de 2016
L de Lost in translation
A MORTE E A DONZELA
AMY LOWELL (E.U.A., 1874-1925)
GROTESCO
Porque é que os lírios me deitam a língua de fora
Quando os corto;
E se torcem e contorcem
E se estrangulam entre os meus dedos,
Ao ponto de mal conseguir tecer esta grinalda
Para o teu cabelo?
Porque é que gritam o teu nome
E me cospem
Quando os tento juntar?
Terei de os matar
Para que fiquem quietos,
E enviar-te uma coroa de cadáveres suspensos
Que murchem e apodreçam
Na tua testa
Enquanto dansas?
*
ANTONIA POZZI (Itália, 1912-1938)
NOVEMBRO
E depois – quando eu partir
restará alguma coisa
de mim
no meu mundo –
restará um fino rasto de silêncio
no meio das vozes –
um ténue sopro de branco
no coração do azul –
E numa noite de Novembro
uma menina frágil
à esquina de uma rua
venderá braçadas de crisântemos
e lá estarão as estrelas
gélidas verdes distantes –
Alguém chorará
em algum lugar – em algum lugar –
Alguém irá procurar crisântemos
para mim
no mundo
quando sem regresso
eu tiver de partir.
*
ALEJANDRA PIZARNIK (Argentina, 1936-1972)
CAPÍTULOS PRINCIPAIS
Chega a morte com o seu rebanho de ossos
sorrio submissa a uma menina idiota
que implora em meu nome
juntas (a morte, a menina e eu)
não encontramos outro trabalho senão odiar
No final todos se casam:
o mar e as ondas,
a noite e o escuro,
o copo e o vinho,
o anel e o dedo,
a morte e o cadáver.
Poemas escolhidos/traduzidos por Inês Dias,
aqui compostos/impressos por Luís Henriques e Manuel Diogo
aqui compostos/impressos por Luís Henriques e Manuel Diogo
Libellés :
"Porque agora vemos como por espelho",
AVERNO
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
A de Amor (XXVI)
ERRATA
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.
Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.
Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.
Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.
MANUEL DE FREITAS
in Terra Sem Coroa, Teatro de Vila Real, 2007
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
O de "O poema ensina a cair" (II)
VERSOS DE CIRCUNSTÂNCIA
eu não entendia
e ela se mexia tanto ao meu lado
e aqueles bancos apertados
o ar condicionado gelando
tudo (os brincos dela,
o meu humor)
mais de uma hora cruzando
ruas, avenidas, parágrafos –
o livro gritando alto
para um mundo ensurdecido
depois de arrumar-se mais
algumas dezenas de vezes
o sol já estava no meio do céu
quando ela se levantou
foi então que percebi que
três pequenos pássaros
voavam em suas costas
- FABIANO CALIXTO
F de Fazer Fotografia (LXXIII)
PHOTOGRAPHY
A fine wind blows into the heart,
And you fly headlong on,
While love within the roll of film
Holds the soul fast by its sleeve.
Bird-like she steals grain by grain
From oblivion - and now?
She does not let you fall to dust,
Even dead you're still alive -
Not wholly but a hundredth part,
In muted tone or sunk in sleep,
As if you wandered through some field
In a land beyond our ken.
All that's dear and seen and living
Makes the same flight as before,
Once the angel of the lens
Has your world beneath his wing.
Arseniy Tarkovsky, 1957
in Andrey Tarkovsky, Bright, bright day,
Londres: White Space Gallery / The Tarkovsky Foundation, 2007
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
S de Solidão (ou C de Comunidade) X
Assim escrevo
alegre e inspirado com a palavra.
Folheio as obras dos velhos e novos
e faço-o confiante. Mas estou cercado
de vocábulos que me atacam pelas costas.
Sou um poeta difícil:
Ausculto a sílaba que contém
o movimento futuro da estrofe.
Sim, a poesia é a menos saudável das ocupações.
E ser poeta não é uma ambição minha:
É a minha maneira de estar sozinho.
António Barahona, Impressões Digitais (1968)
V de Vida (VIII)
"Vous ne pourrez jamais voir cette étoile comme je la voyais.
Vous ne comprenez pas:
elle est comme le coeur d'une fleur sans coeur."
- ANDRÉ BRETON -
[Andrei Tarkovsky, A Infância de Ivan, 1962]
A VIDA
Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.
Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.
Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.
O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrão que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.
Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.
André Breton e Paul Éluard, A Imaculada Concepção,
Lisboa: Estúdios Cor, 1972
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
P de Poética (XXVIII)
faço versos para retardar o acidente coronário
podia fazer ginástica de manutenção que era o mesmo
disse de vez: ao diabo o nome nos índices remissivos!
escrevam teses sobre a prenhez do referente
deixem-me olhar a chuva e deixem-me
palitar os dentes - ut supra
não acerto com o Zeitgeist é escusado (e é inútil)
e passa tanto tempo num minuto
Fernando Assis Pacheco,
Memórias do Contencioso e outros poemas, 1980
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
terça-feira, 11 de outubro de 2016
C de Cicatriz (VI)
Pensei, eu podia ter descido aqui naquele dia, talvez tivesse desenhado um lago tranquilo e as últimas flores de Setembro, e voltado para Londres sem cicatrizes. Embora esta cicatriz faça parte de mim, não quero que desapareça, era algo que faltava escrever no meu rosto, nunca gostei de tatuagens, mas era como se esta linha faltasse, talvez tudo tivesse acontecido para que o meu rosto ficasse acabado...
Ana Teresa Pereira
in Karen, Lisboa, Relógio D'Água, 2016
[ID, Nazaré, 08/10/11]
Sábado, 6 de fevereiro
Estou a ler a tradução francesa de uma série de contos de Henry James. A sedução do outro? Ou o outro que procuramos em nós mesmos? E que no final quando descobrimos que foi um longo passo, um percurso, um tempo interior intensamente vivido tão ao lado do outro, tão com o outro, que num instante por circunstância da história comum se desfaz; se anula por qualquer intempérie quase meteorológica ou por uma caso ou fatalidade que irrompe na vida comum, no dia-a-dia de um ou do outro - tudo vai continuar, quase, como se coisa alguma se tivesse passado. Uma ferida ficou aberta no ar. Está quase em cicatriz. E no início dos inícios, quando tudo chegou ao fim, ou melhor, ao nenhum fim que sempre povoa a história das grandes amizades (...), percebe-se como a partida para o outro, para nós mesmos no outro, na invenção do outro e do outro em nós mesmos, tudo não passou do grande temor pelo desconhecido; um sucedâneo de descida à caverna e de ultrapassagem desse pavor. Olhamos, então, para a cicatriz que restou, para a incisão na pele, na carne, na alma. O outro compensa a realidade, supera-a; é uma ardil com que fintamos a própria existência. Uma espécie de bem-aventurança para contrapesar a esperança, que corrige a raiva ou o pessimismo da fortaleza que nem eu nem o outro, que nenhum de nós já sabe encontrar nos ardis da vida. Sendo estes iguais, exactamente iguais ao tempo da vida.
João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012
segunda-feira, 10 de outubro de 2016
T de (Uma) teoria de pássaros (XIII)
SENHORA
Senhora, há demasiados pássaros
No vosso piano
Que atrai o Outono sobre uma selva
Espessa de nervos palpitantes e libélulas
As árvores em arpejos insuspeitados
Às vezes perdem a orientação do globo
Senhora, suporto isso tudo. Sem clorofórmio,
Descendo ao fundo da madrugada,
O rouxinol, rei de Setembro, informa-me
Que a noite se deixa cair entre a chuva
Burlando a vigilância dos vossos olhares
E que uma voz canta longe da vida
Para suster o espaço despregado
O espaço tão cheio de estrelas que está quase a cair
Senhora, às dez cheira a tabaco de artista
Amais o aroma a corpo de pássaro
Sois um fenómeno ligeiro
Vou-me, solitário, até ao ocaso dos turistas:
É muito mais belo
Vicente Huidobro, Mágica,
trad. de Ricardo Marques,
Lisboa, Língua Morta, 2011
Lisboa, Língua Morta, 2011
domingo, 9 de outubro de 2016
sábado, 8 de outubro de 2016
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
T de Tempo Sem Tempo (XVII)
Porque é que as segundas têm de
estrangular os domingos;
e o outono, o verão;
e o tempo adulto, o tempo mais jovem?
Sob os jardins,
morreram outros jardins.
Atrás do sol,
outros sóis sucumbem,
como roupas velhas num armário.
Ele já não faz perguntas:
apaixonou-se por uma música.
Alain Bosquet
[Trad. ID]
Q de "Que a alegria em mim permaneça" (II)
"Sempre
que vou para o campo, e entro em contacto com a natureza, compreendo que viver é
ver regressar; que cada sensação e cada sofrimento e cada prazer nosso partem,
virginalmente, de uma memória. Quando terá nascido esta emoção que sinto agora
de ver morrer a tarde, embalado no solo, enquanto acaricio a erva? Em que sítio
do mundo terá nascido? De onde veio até mim para que eu a possa sentir deste
modo tão necessário e radical? As emoções, tal como a linguagem, nascem numa
fonte remota do sentir colectivo. Também o ver dos meus olhos e o gostar dos
meus lábios são uma tradição interrompida que eu rezo de novo, e o choro é uma
acção de graças de todos os que me antecederam no conhecimento da dor. […]
Gostaria de te dizer que a memória nos faz e nos desfaz, que a memória é o único
meio que o homem tem para diferenciar umas coisas das outras, para as viver e fazê-las
suas. O que não se recorda, o que não regressa do coração aos sentidos, não se
vive, sente-se. Entre o sentir e o viver está a memória."
Luis Rosales, El contenido del corazón,
1941
[Trad. ID]
domingo, 2 de outubro de 2016
sábado, 1 de outubro de 2016
S de Solidão (ou C de Comunidade) b
7 de Junho de 1979
Compreendi hoje, um pouco melhor, o mistério de solidão. A comunidade tem de estar dispersa, viver na tensão de encontrar-se sem duradouro encontro, cultivar o poder absoluto de estar só, que só ele é inofensivo; é um corpo vivo sem jugo; a comunidade é a diáspora.
Por estes dias sentia-me perturbada, dissolvida na água. Sempre tensa, à procura, em movimento dentro de uma ordem infinita e pré-estabelecida. O trabalho a realizar quotidianamente é mais forte do que conhecer e escrever; estou sempre à espera de poder parar, mas a noite é temporária e ponte para um dia igual. [...]
Maria Gabriela Llansol, Numerosas Linhas - Livro de Horas III,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2013
[ID, Lisboa, 09/016]
XXXIX
E nós somos como os frutos. Pendemos do alto de ramos estranhamente tortuosos e suportamos bem os ventos. O que temos é a nossa maturidade, a nossa doçura e a nossa beleza. Mas a força para tal emana de uma raiz que se propagou até cobrir mundos e mundos em todos nós. E, se quisermos testemunhar a favor do seu poder, então devemos utilizar, cada um, o nosso mais solitário sentido.
Quanto mais solitários houver, mais solene, comovente e poderosa será a comunidade.
Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011
sexta-feira, 30 de setembro de 2016
T de "The days grow short..." (XIV)
426.
A paisagem em Naruni.
mar e arrozais
no início do outono -
o verde governa-os
Matsuo Bashô, O Eremita Viajante [Haikus - Obra Completa],
org. e versão portuguesa de Joaquim M. Palma,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2016
[ID, Lisboa, 09/016]
quinta-feira, 29 de setembro de 2016
P de "Postais do fim do mundo" (VI)
[...]
Como achas que posso amar a minha vergonha tão loucamente?
Nadamos o dia todo escondidos entre rochas
tentando saber o que se diz sobre nós no porto.
Gosto daquilo que disse que amava
e não posso acrescentar mais nada
porque toda esta morte me faz sentir
mais vivo do que nunca,
porque não distingo as épocas da minha vida,
porque não sei que tipo de mulher serias
nem que tipo de homem serei eu quando nos recordarmos.
[ID | Setembro 016]
tinha a nossa primeira casa.
Esqueci-me de um dos quartos, ou não o fixei o suficiente.
Lembro-me de que te levantavas muito cedo,
eu passava a noite toda a escrever,
tu dizias-me para ir dormir,
mas ao amanhecer, enquanto tomavas o pequeno-almoço,
eu lia-te a história da minha educação.
Talvez nesse quarto não tenha acontecido nada
digno de ser recordado
e eu fechava-me nele para escrever
mas não escrevia nada, e tu tiravas-me dali
quase sem ar.
Talvez tenha escrito esse livro sozinho,
e foi essa a primeira ruptura.
No entanto, hoje preciso de saber
quantas divisões tinha a nossa primeira casa,
e a que horas é que te levantavas para ir trabalhar
e sustentar-nos.
[...]
Pablo Fidalgo Lareo, "Um ano sem voltar a casa",
in Cão Celeste n.º 9, Lisboa, Julho de 2016
terça-feira, 27 de setembro de 2016
I de "I want to ride my bike" (II)
O CICLISTA
O homem que pedala, que ped’alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas:
tem o por vir na pedaleira.
Alexandre O'Neill, Poemas com Endereço [1962],
in Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim,
6.ª edição (revista por Luis Manuel Gaspar), 2012
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
O de "O mundo está escuro: ilumina-o" (XXXIII)
"[...] De facto, deram-nos um nome, o nome por que nos chamam, mas não é um consistente - é um verbo.
O nosso verbo, por exemplo, é escrever."
Maria Gabriela Llansol, Inquérito às Quatro Confidências,
Lisboa, Relógio D'Água, 1996
[Willy Ronis, 1945]
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
quinta-feira, 15 de setembro de 2016
M de Meia-estação (II)
CAFÉ SIMPLES
Deus fez o mundo e fê-lo com pressa,
mas os poetas, sem saírem das suas casas,
inflamados, coroados por línguas de fogo,
tiritando de solidão e de frio na madrugada,
mantêm-no em contínuo funcionamento.
O novo carregamento de luz ainda não chegou.
Longamente esperam as folhas negras das acácias,
os sete cinzentos do arco-íris, os vitrais das igrejas,
leves e frágeis como as asas de uma libélula.
Em breve se acumulará a claridade, nutritiva e generosa,
nas esquinas e o bispo branco derrotará o negro.
No Museu Nacional as sombras aguardam;
de um momento para o outro vão partilhar o verde,
o azul de Prússia, o vermelhão e o amarelo.
Os poetas, desvelados, administradores
de um vasto império invisível, preparam café;
esperam que fervam também as palavras.
Uma irmandade secreta de colherzinhas
tilintando nervosas, rodando para misturar
– enquanto as canetas sonham com o seu regresso
a Ítaca – as duas substâncias da vida:
o doce e o amargo, a luz e a escuridão.
Os poetas mexem e remexem: as suas colheres
e as suas canetas não sabem fazer outra coisa.
Com brio, com teimosia, quase com fervor.
Como se o redondo fluir dos relógios
nas morgues e nos aeroportos,
e o ciclo curto das estações
(às vezes apenas Outono e Inverno,
Outono e Inverno repetindo-se)
e o preguiçoso rodar do planeta inteiro,
com as suas dobradiças, os seus parafusos e rodas do destino,
dependessem única e exclusivamente
de um insone movimento de pulso.
in Contra las cosas redondas, La Bella Varsovia, 2016
[Trad. ID]
domingo, 4 de setembro de 2016
quinta-feira, 25 de agosto de 2016
S de Santa Cruz (XIV)
Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.
E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.
Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.
Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, 1963
[ID, 17/08/016]
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.
Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular,
Lisboa, Hiena Editora, 1991
Libellés :
"I'm building a still to slow down the time"
sexta-feira, 19 de agosto de 2016
S de S.T.T.L.
Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios mal fechados.
Desceremos o remoinho mudos.
22 de Março de 1950
Cesare Pavese
in Trabalhar Cansa, trad. Carlos Leite,
domingo, 14 de agosto de 2016
S de Santa Cruz (XIII)
ÁLBUM
Quase nunca apareço, nessas
velhas fotografias: a mão
ou um ombro, desfocados; uma figura
ao fundo,
a sair do enquadramento.
Vejo-me, às vezes, na inquieta
mancha de uma criança, esse estremecimento
no olhar, ou o modo como
o sol derrama o seu ouro na imagem;
ou aí, nesse golpe longo e branco
sobre a superfície do vidro
na parede atrás. Essa
nódoa de luz
a minha marca, de partida.
Se olharem de perto
para estes instantâneos, toda estapelícula a ficar azul, começam
a reparar. Quando finalmente me virem,
vão ver-me por todo o lado: a flutuar
sobre flores, castelos de areia,
folhas caídas, naqueles
bonecos de neve derretendo-se, com as caras
desenhadas a carvão – entre todos
os convidados do casamento,
os convidados do jantar, os convidados
da festa de aniversário – este fumo
na emulsão, o defeito.
Está um fantasma aí; o fantasma levanta-se para ir.
- ROBIN ROBERTSON
[ID, 'The wrecking light', Agosto 2016]
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
terça-feira, 9 de agosto de 2016
A de Amor (VI)
Laurel Gray: [on a scene in Dix's script] I love the love scene - it's very good.
Dixon Steele: Well that's because they're not always telling each other how much in love they are. A good love scene should be about something else besides love. For instance, this one. Me fixing grapefruit. You sitting over there, dopey, half-asleep. Anyone looking at us could tell we're in love.
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
L de (A) Luz da Sombra (XXV)
Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa.
E do chão.
- DANIEL FARIA
sábado, 30 de julho de 2016
O de "O mar, o mar" (V)
São desprezíveis os que amam e os que troçam
e quem espera e o desespero e a nostalgia.
Somos deuses que a dor e a infecção engrossam
e em Deus vamos pensando todavia.
A baía suave. Sonho em bosques sumido.
Os astros pesam, flores-bolas de nevar.
Saltam panteras p'las árvores sem ruído.
Tudo é margem. Eterno chama o mar.
Gottfried Benn, 50 Poemas,
trad. Vasco Graça Moura, Lisboa: Relógio D'Água, 1998
[Epígrafe de Inês Dias, Tempos Vários, Lisboa: Paralelo W, 2014]
E de Estar (V)
AINDA NÃO
Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço demais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer
ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há cama só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração
- ANTÓNIO JOSÉ FORTE
in Surrealismo/Abjeccionismo, org. Mário Cesariny de Vasconcelos,
Lisboa: Edições Salamandra, 1992
S de "Sei de um rio"
[ID, Julho de 2016]
*
[Fotografia de Inês Dias
in Manuel de Freitas, Motet pour les trépassés,
Lisboa, Língua Morta, 2011]
Libellés :
"I'm building a still to slow down the time"
quarta-feira, 27 de julho de 2016
J de (O) Jardim e a a Casa (XVIII)
SE EU FOSSE...
Se eu guardasse patos.
Mas não figura romântica, dama, estilizada.
Não como a que se debruça risonha, regaçada,
para o lago pequeno do Jardim da Estrela.
Se eu guardasse patos, de pé descalço ou de
tamancos...
De cana na mão, malhado do sol, esgrouviada,
sem graça nem disfarces!
Levaria o meu rebanho à minha frente, direitinho
à pancada.
Vá tu, mole. Vá tu, mal mandado. Vá, vá!
Real guardadora de patos da borda-de-água...
Se eu fosse!
Patos, meus cuidados, batidos e dóceis correríeis
como gamos.
Ou se eu fosse uma mulher de canastra.
Das que atravessam a correr as pranchas, carregadas e airosas.
Tantos passos para lá, tantos outros para cá...
Entre o barco e o cais o espaço é curto e debaixo há água.
E a prancha ginga.
Mas elas correm pesadas, seguras e rítmicas.
Ser uma mulher de canastra...
Se eu fosse!
João Falco (Irene Lisboa), Outono havias de vir,
Lisboa: Seara Nova, 1937
"Filha de rei guardando patos", Jardim da Estrela, 1917
*
FILHA DE REI GUARDANDO PATOS
[Jardim da Estrela, 1917]
Já não nos podem tirar nada:
o castelo estava em ruínas
quando o conquistámos
e da revolução sobrara apenas
a memória doméstica da água cortada,
toda aquela roupa por lavar.
Mas as estações deixavam-se guardar
nos herbários e o futuro rasgava-se
ainda nesse gesto largo, sem muros,
longe do exercício incerto de descer
a calçada mais íngreme.
Estas eram as nossas estrelas -
açaimadas, coxas, vadias.
E não desistimos de as trazer para casa.
Inês Dias,
in Deitar a Língua de Fora, com ilustrações de Luís Henriques
Lisboa: Língua Morta, 2012
Subscrever:
Mensagens (Atom)