sexta-feira, 31 de março de 2017

E de 'Em caso de tempestade este jardim será encerrado'


Mais uma vez os jacintos,
celestialmente azuis no meu jardim:
Eles, pelo menos, inalterados.


Amy Lowell, Não eram rosas,
trad. Ricardo Marques,
Lisboa: Língua Morta, 2012




[...]
Poetry is the synthesis of hyacinths and biscuits.
[...]


- CARL SANDBURG

terça-feira, 21 de março de 2017

P de Poética (XLII)


ASPECTOS DE UMA DEFINIÇÃO


[...]

- Destrói os teus escritos, já que não tens fé neles.
- São provas contra mim.
- E se todos os teus leitores te absolverem?
- Serei eu a denunciá-los, por serem meus cúmplices.

[...]

Se tivesse coragem, só escreveria poemas anónimos.

*

Escolher uma filosofia? Um taoismo da raiva.

[...]

A escreve um poema. B continua-o num desenho. Baseando-se nesse desenho, C compõe uma música. Graças a ela, D consegue aperfeiçoar os movimentos de um motor. Este último permite a E descobrir uma nova cura, que inspira F na sua teoria sobre a evolução do pensamento humano. G aplica a teoria de F em poesia. G e A são a mesma pessoa. Ou então: um poema só é válido se a sua última palavra for também a primeira palavra de dez poemas a escrever, a primeira pincelada de cem quadros a pintar, a primeira nota de mil sinfonias a compor. A poesia é indivisível e supera o poema, o seu tapa-buracos.

*

Tudo é desespero na poesia: o achado ainda não é o poema, a perfeição já não é o poema. 

[...]

Escreve como se as tuas obras fossem já póstumas, e a tua língua uma língua morta. Mas: traduz todos os dias o teu poema da véspera na tua língua de amanhã. 

[...]


- ALAIN BOSQUET
[Trad. ID]

sábado, 18 de março de 2017

R de Rebeca (XII)


Ele podia ouvir os cães à distância, e os seus latidos
levaram-no até à capela que se erguia junto à estrada,
mas não entrou nela. Isto ficava aquém de rezar,
e os cães negros eram apenas os seus pensamentos de noites de terror
através das rígidas e gratificantes florestas de Santa Cruz;
o coração dele coxeia, borbulhando sangue como bagas no seu caminho,
três ou quatro cristas de palmeira, e os berros loucos dos papagaios
são como o rumor dos testemunhos num julgamento obsceno,
mas atravessam o céu róseo e desvanecem-se, e regressa o consolo.
Na quente e oca tarde, um grito atravessa o vale,
um falcão plana, e atrás da chama das perpétuas uma colina arde
com um sulco de fumo azul; isto é tudo o que há de importante.
Ó folhas, multiplicai os dias da minha ausência para os subtrair
à humilhação do castigo, à emboscada da desgraça
pelo que são: excremento que não merece nenhum tema,
nem o nó e o aprumo de um cedro ou a erva branda,
apenas o desdém da indiferença, de suportar a tempestade de abusos
como o ágil movimento dos ramos que se agitam com a graça
da resistência, curvando-se do mesmo modo que o bambu obedece
às rajadas horizontais de chuva, não enquanto martírio
mas enquanto complacência natural; abaixo dele havia uma casa
em que sem qualquer ferida era mais do que bem-vindo,
e cães dóceis vinham até ao portão atraídos pela sua voz.


- Derek Walcott [1930 - 17 de Março de 2017]
in The Bounty, 1998
[Trad. Inês Dias]

segunda-feira, 13 de março de 2017

E de "e é sempre segunda-feira / nas paragens" (VI)


HUMILDADE


Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tanto quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora.

(E uma canção tão bela!)

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.


- CECÍLIA MEIRELES

sexta-feira, 10 de março de 2017

C de Começar o dia com um livro novo (XLVIII)


quando eu já cá não estiver
para gostar das coisas a que dei um nome
quem lhes dirá que o meu estava dentro delas
como uma folha de tília
desenhada no frio de uma ardósia?

[...]




Emanuel Jorge Botelho, Os ossos dentro da cinza
com capa de Inês Dias e arranjo gráfico de Pedro Santos, 
Lisboa, Averno, 9 de Março de 2017

quinta-feira, 9 de março de 2017

R de Rezar na era da técnica (XXIV)


P de (Po)ética (LV)


ESCREVER


A vida é demasiado séria para eu continuar a escrever. A vida costumava ser mais fácil, e muitas vezes agradável, e então escrever era agradável, embora também parecesse sério. Agora a vida não é fácil, tornou-se muito séria e, por comparação, escrever parece um pouco disparatado. Escrever não é, muitas vezes, sobre coisas reais, mas depois, quando é sobre coisas reais, está muitas vezes a ocupar o lugar de algumas coisas reais. Escrever é demasiadas vezes sobre pessoas que não aguentam mais. Tornei-me entretanto uma dessas pessoas. Sou uma dessas pessoas. O que eu devia fazer, em vez de escrever sobre pessoas que não aguentam mais, é pura e simplesmente desistir de escrever e aprender a aguentar. E prestar mais atenção à própria vida. A única maneira de me tornar mais inteligente é não voltar a escrever. Há outras coisas que eu devia estar a fazer em vez disso.


Lydia Davis, Não Posso nem Quero,
trad. Inês Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2015




[ID, Coimbra 013]

quarta-feira, 8 de março de 2017

N de "no lugar seguro da próxima Primavera" (M.G.L.) - XI


ENTRE MARÇO E ABRIL


Que cheiro doce e fresco,
por entre a chuva,
me traz o sol,
me traz o rosto,
entre março e abril,
o rosto que foi meu,
o único
que foi afago e festa e primavera?

Oh cheiro puro e só da terra!
Não das mimosas,
que já tinham florido
no meio dos pinheiros;
não dos lilases,
pois era cedo ainda
para mostrarem
o coração às rosas;
mas das tímidas, dóceis flores
de cor difícil,
entre limão e vinho,
entre marfim e mel,
abertas no canteiro junto ao tanque.

Frésias,
ó pura memória
de ter cantado –
pálidas, fragrantes,
entre chuva e sol
e chuva
– que mãos vos colhem,
agora que estão mortas
as mãos que foram minhas?


EUGÉNIO DE ANDRADE

terça-feira, 7 de março de 2017

C de Começar o dia com um livro novo XLVII - b




[Uma epígrafe
in Rosa Maria Martelo, Siringe
Lisboa, Averno, 2017]

domingo, 5 de março de 2017

T de Teacher Was Here (II)


"[...]
O lugar está em mim. O céu está em ti."





[ID, 04/03/017]

sábado, 4 de março de 2017

C de Começar o dia com um livro novo (XLVII)


AZUIS


I

Não sei se o fio do horizonte separa ou junta dois azuis. Faz rimar azul com azul, mas é talvez falsa, essa rima. O finito e o infinito, e ao meio uma só linha a cerzir azul com azul: céu e mar não rimam, e no entanto haverá rima mais perfeita? O mar, e depois dele o outro azul (que às vezes parece negro), assim por esta ordem. Ou é apenas falsa rima, a esconder, noite com noite, uma outra noite maior e mais dispersa?

[...]


Rosa Maria Martelo
in Siringe, com capa de Luis Manuel Gaspar e arranjo gráfico de Inês Mateus,
Lisboa, Averno, 2017





[ID, 27/02/017]

sexta-feira, 3 de março de 2017

V de Vista para um saguão (VI)


"MARÇO

O primeiro cuco e as primeiras brisas primaveris. Agora, nas ilhas mais ao sul,  as primeiras cigarras começam a saudar a luz do Sol e as andorinhas a construir os ninhos nos beirais. (Destrói o ninho da andorinha e vais ficar com sardas, diz a lenda popular. Outra superstição diz que haverá uma morte na casa.) No primeiro dia do mês, os rapazes fazem uma andorinha de madeira, enfeitam-na com flores e vão de casa em casa, pedindo moedas e cantando uma pequena canção que varia de lugar para lugar na Grécia. Este costume vem da mais remota Antiguidade e é mencionado por autores gregos antigos.
Em algumas ilhas do Mar Egeu, os camponeses acham que dá azar lavar ou plantar vegetais durante os três primeiros dias de março. Se se plantar árvores, estas murcham. O sol de março queima a pele; e um fio vermelho e branco no pulso não deixa que os nossos filhos tenham queimaduras solares.
[...]"


Lawrence Durrel, As Ilhas Gregas,
trad. de Carlos Leite, Lisboa, Relógio D'Água, 2016




[ID, Abril 2016]

quinta-feira, 2 de março de 2017

E de "e é sempre segunda-feira / nas paragens" (V)


"[...] Quando vivia em Londres, o terror era quase insuportável. Não conseguia escapar aos homens; as suas vozes entravam pelas janelas, e até as portas trancadas se revelavam frágeis salvaguardas. Saía de casa para combater as minhas alucinações, e mulheres de rua miavam-me, homens carentes e furtivos lançavam-me olhares de cobiça, trabalhadores pálidos e exaustos passavam por mim a sorrir, com o seu olhar cansado e o seu andar ansioso, como veados feridos a pingar sangue, e pessoas idosas, curvadas e mortiças, cruzavam-se comigo, falando sozinhas, absolutamente indiferentes a um séquito esfarrapado de crianças trocistas. Refugiava-me então nalguma capela, mas mesmo aí a minha perturbação era tão grande que me parecia que o pregador palrava, encadeando Grandes Pensares tal como o Homem-Macaco fazia; ou numa biblioteca, e aí os rostos concentrados nos livros lembravam-me apenas criaturas pacientes à espera da sua presa. Os rostos vazios e inexpressivos das pessoas nos comboios e nos autocarros eram particularmente repelentes; eram tão parecidos com seres humanos como o seria um cadáver, de modo que não me atrevia a viajar a menos que tivesse a certeza de estar sozinho. E nem eu parecia ser uma criatura racional, mas apenas um animal atormentado por uma estranha perturbação do seu cérebro, que o obrigava a vaguear sozinho como um carneiro doente. 
[...]"


H. G. Wells, A Ilha do Doutor Moreau
trad. de Inês Dias, 
Lisboa, Relógio D'Água, 2017