terça-feira, 29 de setembro de 2020

I de Intimidade (IV)

 



René Magritte, Les Amants (1928)





Paul Delvaux, La Joie de vivre, 1937

sábado, 19 de setembro de 2020

S de Sense of Snow (XI)


BALLADEN OM JENNY LIND


E é de novo sexta-feira, na mesma cidade.
As sirenes respondem pontualmente
aos corpos e bicicletas que se perdem
noite dentro. Nada que possa incomodar
o sono altivo dos mendigos da Stroget,
enrolados em mantas e garrafas já sem cor.

Decidimos tomar o último copo
no café Monten. Ao balcão, os homens
dos barcos falavam de todos os países
que viram ou não viram, sob nuvens de fumo
que escondiam mal um inglês de circunstância.

Na parede junto à nossa mesa (recorte
da época) Jenny Lind morria - e eu
ficava a saber, em sueco, que "Rökning
dödar", o que não parecia incomodar
nenhum dos presentes. No Nyhavn,
porém, anoitecia muito depressa. Teremos
de esperar pela neve, agora que passou a chuva.


Manuel de Freitas, Brynt Kobolt,
Lisboa: Averno, 2008




sexta-feira, 18 de setembro de 2020

E de Espera (XXI)

CONTRA-TEMPO



Ainda mais alguns dias até ao acontecimento. Passa-se do outro lado da rua por causa disso - da espera. Toda a gente (alguns) dizem: "é para hoje" e fazem rapidamente as malas. Enchem-nas de chaves iale e parafusos, fusos horários e rocas peadas. "É para já" dizem. São os que anulam muito bem a coisa de que entre cada dia e cada dia há uma noite inteira para comover-se e pousar. Tomam a pose solar e iludem a chuva e todas as faces da água - provando pois que o espaço pode ser impermeável e a vida dois dias - o que esperaram no susto de antes do antes de ser este dia aplacado que fazem - o dia placa - e este. É a gente do já. Faut les aimer, faut les aimer, dizem as avezinhas de frança nos dias úteis. Mas essas não são o acontecimento, nem sequer seu anúncio.


[...]


Maria Velho da Costa, Desescritas, 1973

terça-feira, 15 de setembro de 2020

A de Aniversário (VI)


A BIRTHDAY


My heart is like a singing bird
Whose nest is in a water'd shoot;
My heart is like an apple-tree
Whose boughs are bent with thick-set fruit;
My heart is like a rainbow shell
That paddles in a halcyon sea;
My heart is gladder than all these,
Because my love is come to me.

Raise me a daïs of silk and down;
Hang it with vair and purple dyes;
Carve it in doves and pomegranates,
And peacocks with a hundred eyes;
Work it in gold and silver grapes,
In leaves and silver fleurs-de-lys;
Because the birthday of my life
Is come, my love is come to me


- Christina Rossetti (1861)

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

N de Nefelibata





SETE PRESENTES


I


Já as conheces
de certo modo são como as pessoas
querem muito encontrar-se:
as nuvens, as palavras.

Por isso agora
após o relâmpago
quando as nuvens lutam por criar raízes
as palavras juntam-se para descobrir

onde se encontram
os que desaparecem.

E os silêncios mudam de lugar.
E a vida é
quase mais estranha ainda
menos nossa

do que supúnhamos.

                                 Já nos conheces.


Abraham Gragera, Adiós a la época de los grandes caracteres
Valência: Pre-Textos, 2005
[Trad. ID]

terça-feira, 8 de setembro de 2020

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" (XXX)


Dizem que em cavidades de alguns poços,
nas fissuras, por onde cresce o musgo,
faz seu ninho por vezes certo pássaro
e solta desde aí seu canto incerto.

Duvidas e cantas: é o teu credo.
Salvar um pouco desse instante único
que chega a ti como um deslumbramento,
como uma convulsão que desfaz
e dilui fronteiras, coutos, limites.
Porque também o tempo, quando quer
e se detém a meio de dois números,
é um peso que eleva, é como um bálsamo
que alivia a dor de viver sem rumo,
de estar perdido onde nada é nada
e tudo muda de essência e forma.

Vive e alegra-te. E morde a fruta
que é ser e respirar ainda hoje
embora ao comê-la o sabor amargue.
Entra sem medo num lugar mais fundo:
não há sendas que saiam deste bosque.

Voa a teu lado o corvo e sentes frio.
Tuas mãos tocam uma porta, um muro.
Ao longe escuta-se um rumor de água.
Cercam-te vozes, passos de outra vida.
Aqui a tua casa: esta névoa.


José Mateos, A Névoa
trad. e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 
Lisboa: Averno, 2006







[ID, São Miguel / Agosto 012]

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

P de (Po)ética - XLIX e







Sim, tenho ouvido dizer
que as grandes causas
são grandes e lucrativas.

Mas prefiro falar
daquele armário azul
encostado ao coração
podre.


Manuel de Freitas, Game Over, 2.ª ed. rev.,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos,
Lisboa: Alambique, 2017