sexta-feira, 19 de setembro de 2014

L de Levantar a cabeça (XII)


"[…] Por entre a frincha larga das portadas havia sempre um resto de luz a invadir a penumbra e a expor as arestas das coisas. […]”


  ALEXANDRE SARRAZOLA
in Neófitos, com fotografias de Mafalda Capela,
Lisboa: Averno, 2014




[Santarém, 06/10/12]


"Havia muito a ver também. Certos instantes de ver valiam como 'flores sobre o túmulo': o que se via passava a existir. No entanto Joana não esperava a visão num milagre, nem anunciada pelo anjo Gabriel. Surpreendia-a mesmo no que já enxergara, mas subitamente vendo pela primeira vez, subitamente compreendendo que aquilo vivia sempre. Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a balançar para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde... E de repente, sim, ali estava a coisa verdadeira. Um retrato antigo de alguém que não se conhece e nunca se reconhecerá porque o retrato é antigo ou porque o retrato tornou-se pó - esta sem-intenção modesta provocava nela um momento quieto e bom. Também um mastro sem bandeira, erecto e mudo, fincado num dia de verão - rosto e corpo cegos. Para se ter uma visão, a coisa não precisava de ser triste ou alegre ou se manifestar. Bastava existir, de preferência parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por Deus, a marca da existência... Mas isso não deveria ser buscado uma vez tudo o que existia forçosamente existia... É que a visão consistia em surpreender o símbolo das coisas nas próprias coisas."


CLARICE LISPECTOR
in Perto do coração selvagem, Lisboa: Livros do Brasil, s/d

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