[ID, Lisboa | 06/011]
GATO EM APARTAMENTO VAZIO
Morrer - isso não se faz ao gato.
Pois que há-de um gato fazer
num apartamento vazio.
Ir arranhando as paredes.
Roçar-se por entre os móveis.
Por aqui nada mudou
mas está mais que mudado.
As coisas estão nos sítios,
mas os sítios outros são.
E nem se acende a luz pela noitinha.
Ouvem-se passos na escada,
todavia, não os tais.
A mão que põe no pratinho o peixe
também não é a que antes punha.
Algo aqui não acontece
às horas que acontecia.
Algo há aqui que não corre
como devia correr.
Alguém aqui esteve, esteve,
e agora teima em não estar.
Vasculhados todos os armários.
Percorridas todas as prateleiras.
Uma vez verificado o chão sob a alcatifa.
Contra todas as proibições até,
espalhados os papéis.
Que é que fica ainda por fazer.
Dormir e esperar.
Deixa-o só voltar,
deixa-o lá mostrar-se.
Há-de aprender
que com um gato não se brinca assim.
Há-de um bicho ir-se chegando para perto,
como quem não quer a coisa,
bem devagar,
muito sobre as patinhas ofendidas.
E ao princípio nada de saltar nem de miar.
Wislawa Szymborska, Paisagem com grão de areia,
trad. de Júlio Sousa Gomes, Lisboa, Relógio D' Água, 1998
[ID, Lisboa | 04/015]