terça-feira, 30 de janeiro de 2018

L de 'Les timides'


"As duas timidezes observavam-se uma à outra. Os dois silêncios, os dois constrangimentos. Eram ambos interiores orientais, sem janelas para fora, com vasos verdes no pátio do meio, e todas as varandas abertas para dentro de casa."

- ANAÏS NIN

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

R de Rezar na era da técnica (XXVI)


O MISTÉRIO DAS ORAÇÕES


Na minha família
as orações eram rezadas secretamente,
em voz baixa, o nariz vermelho sob o cobertor;
quase murmuradas,
com um suspiro no princípio e no fim,
fino e limpo como uma gaze.

Junto à casa
havia apenas uma escada para subir,
de madeira, encostada à parede o ano inteiro,
de modo a reparar o telhado em Agosto, antes das chuvas.
Mas, em vez de anjos,
subiam e desciam homens
sofrendo de ciática.

Rezavam-Lhe olhos nos olhos,
na esperança de renegociar os seus contratos
ou adiar os respectivos prazos.

“Senhor, dá-me forças”, nada mais,
pois eram descendentes de Esaú,
abençoados com a única bênção que restara de Jacob
– a espada.

Na minha casa
a oração era considerada uma fraqueza
que nunca se devia mencionar,
tal como fazer amor.
E, tal como fazer amor,
era seguida pela assustadora noite do corpo.


Luljeta Lleshanaku
in Telhados de Vidro n.º 22, trad. de Inês Dias e Marjeta Mendes, Lisboa, Averno, 2017



terça-feira, 2 de janeiro de 2018

B de Bom Ano Novo (X)


RELIGIÃO


If I were called in
to construct a religion
I should make use of water

PHILIP LARKIN


Inaugurar uma religião:
adorar os pontos em que se formam
as estações do ano
os gestos de desnudar-se
o dia depois da chuva
a distância: entre uma árvore e outra árvore,
entre cidades com o mesmo nome
em diferentes continentes.
Criar relíquias:
os táxis ao entardecer, as colheres
brilhando ao sol
esboços de mãos e pés
de pintores antigos
as presas ensanguentadas
que nos trazem os gatos.
E ainda outras, íntimas, insensatas
a luz nos seus cabelos
as fotografias de parentes
que não sabemos quem são.
Adotar novas bíblias:
longos romances inacabados
palavras lidas sobre os ombros
de alguém no metrô
poemas clássicos traduzidos
por tradutores automáticos.
Reconhecer enfim o divórcio
como um sacramento.
Na liturgia
tocar como partituras
os mapas das cidades.
E no Natal
só celebrar o que nasce
do sexo
para morrer
de fato.


Ana Martins Marques 
in Telhados de Vidro n.º 22, 
com capa de Rui Chafes e arranjo gráfico de Inês Mateus (sobre grafismo de Olímpio Ferreira),
Lisboa, Averno, 2017

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018