Outro dia reli o romance de Thomas Mann, A Montanha Mágica. Este livro encena uma doença que eu conheci muito bem: a tuberculose; através da leitura, reunia na minha consciência três momentos dessa doença: o momento da anedota, que se passa antes da guerra de 1914, o momento da minha própria doença, por volta de 1942 e o momento actual, em que a moléstia, vencida pela quimioterapia, já não tem a mesma gravidade que tinha antigamente. Ora a tuberculose que vivi é muito pouco parecida com a tuberculose da Montanha Mágica: os dois momentos confundiam-se, igualmente afastados do meu presente. Apercebi-me então com espanto (só as evidências podem espantar) que o meu próprio corpo era histórico. Em certo sentido o meu corpo é contemporâneo de Hans Castorp, o herói da Montanha Mágica; o meu corpo, que ainda não tinha nascido, tinha já vinte anos em 1907, o ano em que Hans penetrou e se instalou na "região do alto"; o meu corpo é bastante mais velho do que eu, como se nós conservássemos sempre a idade dos medos sociais por que passámos ocasionalmente. Se, afinal, quero viver, devo esquecer que o meu corpo é histórico e devo alimentar a ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes e não do meu corpo passado. Numa palavra, devo renascer periodicamente, tornar-me mais jovem do que sou. [...] Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que se não sabe: a isso se chama procurar.
Roland Barthes, Lição,
trad. Ana Mafalda Leite, Lisboa: Edições 70, 1988