sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

V de Viagens (III)

Porque um Ano Novo também é uma viagem - e apetece-me sempre estrear um caderno/livro/diário/bloco/folha no dia 1 de Janeiro:

Os meus blocos estão atafulhados de apontamentos desordenados: lugares, nomes, cheiros, horários, citações, títulos de livros ou autores que não encontrei, direcções, números de telefone para onde não liguei ou liguei e não atenderam, tarefas que me propunha fazer e afinal consistiam no prazer de estrear a quadrícula das folhas em branco.
Raramente começo uma viagem sem um bloco novo. Procuro-os nas pequenas papelarias, preferencialmente de província, onde me anima acreditar que sou esperado por um bloco de folhas imaculadamente pardas, dimensão consentânea com o bolso da camisa, do blusão, sem que a espiral metálica entre em conflito com a lapiseira e o cachimbo.
Essa ronda é apenas um dos muitos subterfúgios a que recorro para ritualizar a viagem da escrita em viagem (...).
Jorge Fallorca, A Cicatriz do Ar,
Lisboa: Edição de autor, 2009

1 comentário:

Anónimo disse...

2.
Nessa casa onde com setas pintadas de vermelho o teu quarto de menina foi percorrido em quadro, sentada na sala pequena, já quase na penumbra da tarde que decai, tu lês com a lentidão, precipitada e presa, do medo. Mesmo que mais tarde não sai¬bas dizer o nome do livro, poderás mentir e inventá-lo, e estará certo para que tudo possa ser mais firme, mais fixo, coma se tudo pudesse ficar numa fotografia. Ou, então, exasperada, procurarás lembrar-te, sabendo que essa demora falha inevitavelmente qualquer coisa, mas tudo ficará assim movediço e errático, como se para provar que essa fotografia era mentira. Enquanto lês, sentes o peso e a espera da casa - irás anos depois ler a maçã no escuro - como se estivesses prestes a enlouquecer. Sentes a cor da casa, a força guardada dos móveis, os ruídos da cozinha para lá da esquina do corredor, o ruído que não podes ouvir do relógio de parede, a experiente aceitação com que a jarra poisa na coberta de veludo, com que as cortinas defendem a janela, com que as roupas e as loiças se mantêm nos armários, com que os livros se encostam e não deslizam (deslizarão) na estante, com que a lingueta da fechadura da porta da rua espera ser accionada. Tudo te atravessa com a perfeição adolescente, uma forma vertiginosa e irradiante do medo, para se te gravar no cére¬bro e na pele, escrevendo insidiosa e raivosamente a tua história, que tu não sabes qual será no futu¬ro, que de todo não imaginas, mas que poderás talvez oculta e obstinadamente sonhar, mais do que isso, conhecerás coma inexoravelmente viva (: assim o profetizo). Isto ficará escrito: essa hora da casa, essa maneira de medir o tempo no livro que lês, essa maneira de desejar que não aconteça o que há-de acontecer; mas outros livros, outras horas virão, outros capítulos dessa historia e dessa escrita hão-de vir, lentos e vertiginosos, implacáveis e exaltantes. Tudo se construirá e destruirá, tudo coexistirá numa sucessão de capítulos onde os nomes dos teus povos andarão de trás para diante e de diante para trás, sublinhando, escrevendo em itálico, abrindo parênteses, sempre abrindo a ameaça, com a veemente entrega à fascinação que magoa e exalta, à alegria e à desatada miséria. Sem o pen¬sares talvez, mas vais de qualquer modo escrevendo sobre as frases que lês o medo e o ódio, a esco¬lha. Vais sabendo os minutos e os segundos que faltam para ouvires ainda na rua os passos que reconhecerás querendo alterar a hora, querendo que a hora passe e já a porta se tenha aberto, e

in o leitor escreve para que seja possível, manuel gusmão

MM