quarta-feira, 2 de novembro de 2016

S de Solidão (ou C de Comunidade) II


ANUNCIAÇÃO
- segundo Fra Angelico


Ele veio do jardim, sem deixar
nem sombra, nem pegada sobre o orvalho.
Os olhares de ambos sustêm-se no ponto
de equilíbrio: tudo conduzindo 
a este momento, tudo se afastando.

Uma palavra lançará a semente
da vida e da morte,
o ensombrar desta rapariga
por umas trevas emplumadas.
Mas ainda não: agora ainda não.

Como recordará ela o silêncio
desse interminável momento?
Ou o final, quando tudo começou -
a primeira de sete alegrias
antes das sete dores?

Ela recordará a canção a seguir
porque é apenas humana.
Um dia
acordará com asas, ou acordará
e descobrirá que elas desapareceram. 


Robin Robertson, Hill of Doors,
Londres: Picador, 2013
[Trad. ID]












                           
                                           
«HAVERÁ UMA BELEZA QUE NOS SALVE?»


Não, não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva. E a bondade manifesta-se, por vezes, no meio da maior fealdade. Explico-me. Uma pessoa capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre. Quando visitamos um museu com obras belíssimas, como o Louvre ou o Prado, podemo-nos esquecer de que as pessoas, os visitantes e os funcionários que estão lá connosco, são obras mais belas do que as mais belas obras expostas que andamos a ver. Um artista torturado pela beleza que consegue, ou que não consegue, dar ao que pinta e que se autodestrói está equivocado. Seria preferível deixar de pintar ou pintar obras medíocres. Como dizia o meu avô materno, que era médico, «mais vale burro vivo do que sábio morto». Se a busca da beleza nos impede de viver, então há é uma beleza que nos perde. E há.
Penso que não nos devemos enganar sobre a beleza. Se a nossa obra artística, ou outra, não implica a renúncia às coisas inúteis e a partilha, então é bastante inútil. E as coisas inúteis, para uma poetisa, são o desejo de escrever obras perfeitas e o de ser reconhecida pelos seus pares. Roubei à Irmã Emmanuelle a expressão «renúncia às coisas inúteis e partilha» («renonce aux choses inutiles et partage», in Famille chrétienne,Numéro hors série, été 2004, p. 6). Se não há partilha, o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si.
Os artistas são, às vezes, muito egoístas. É verdade que as suas obras, apesar disso, podem comunicar --mas será involuntariamente? -- bons sentimentos. A arte está cheia de ódio, de maus sentimentos. Parece que estou a dizer mal da arte e não queria fazer isso.
No Natal, uma amiga mandou-me um cartão de boas festas da Unicef com um Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Tenho-o em exposição no meu quarto e, quando quero rezar, olho para ele. Mas não sou contemporânea de Fra Angelico. Não posso tomar café e tagarelar com ele nos cafés como posso fazer com a amiga que me enviou o anjo dele pelo Correio. Por isso o Anjo da Anunciação de Fra Angelico, que é tão bonito, pode também ser doloroso. Fra Angelico já morreu. E não é a beleza do anjo de Fra Angelico que me garante que Fra Angelico ressuscitará.
Um poema de Rimbaud está cheio de violência. Há muita beleza na expressão dessa violência. E isto é terrível. Preferia que Rimbaud não estivesse ferido a ponto de escrever daquela maneira? Preferia. Mas não posso dizer isto assim.
A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e dourado. É verde e azul. Mas, ao escrever assim, parece-me que estou a evocar o poema de Rimbaud intitulado «Voyelles». A arte é um modo de lidar com a ausência. E por isso é tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da presença.


Adília Lopes, Le Vitrail La Nuit/A Árvore Cortada, 
Lisboa: &etc, 2006

3 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Arriscar-me-ia a dizer que é uma grande verdade. Seja a verdade o que for :-)

Anónimo disse...

Uma bela, porque exacta, introdução ao doloroso universo de Adília Lopes, recomendável a certos tontinhos (são plurais, infelizmente) que teimam um ver nela uma herdeira do surrealismo. Continua, é certo, a faltar aqui uma grande razão. Mas não por culpa de Adília, Cesariny e alguns mais. Sempre poucos, e raramente felizes. Mas têm essa única, e combustível, verdade. O resto é literatura, no mais tordo sentido do termo.

M.

Anónimo disse...

Um texto muito importante sobre a arte e sobre a vida. "A arte é um modo de lidar com a ausência". Todo o artista é solitário, ainda que seja egoísta, e isso também poderá quer dizer que é um egoísta "à força" ou não.
Acabo com estas palavras da autora : "só a bondade nos salva".
Aqui entre nós, penso que andamos um pouco longe da vida. Os poemas começam sempre nesta ausência ou são - raras vezes - a alegria de estarmos com os outros.
Um abraço e vidas longas para todos.
Rui Pedro.