sábado, 12 de outubro de 2013

P de Poética (LII)


EU TINHA GRANDES NAUS


Os amantes esquecem. A primavera volta.
A terra treme. E passam as aves em bandos
vindas de Heligoland por detrás da serra.
O teu olhar poisava em mim: estava certo
que fosse dessa maneira. Agora esqueceste
- também está certo, a gente crê-o como tal. 
Porque passar, voltar, tremer, poisar, 
esquecer o que foi agudo e fundo
são coisas, digo bem, de todos os dias.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? morreu-lhes a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

Se o teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
"Há um futuro à espera", porque não também
uma outra mulher que no futuro me espera?
Os amantes esquecem: é que alguma coisa
os leva (recônditamente) a esquecer.
A primavera volta, as aves passam em bandos;
e a mesma terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade. Tudo isto
fará a delícia e o horror dos nossos filhos.

Os poetas, que se lamentam de mais,
acenam com as suas dores particulares
a quem passa, que passa por outras razões.
Querem dedos suaves na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, seres em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta. É bom saber
que num dia qualquer de um destes anos
vamos todos rir e dar as mãos,
troçar do domador se ainda houver.
Os amantes amam: são coisas
da primavera.
Os poetas consertam-se: são coisas
da sua mecânica misteriosa.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Portanto não morri. Caíram árvores,
camponeses gritavam enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.


Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, Cancioneiro Vértice, 1963

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