quinta-feira, 22 de maio de 2014

N de "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos" (VI)


QUINTAL


Deixou a porta aberta, não deve demorar.
Depois de escurecer costuma respeitar
o recolher obrigatório. Durante o dia, sim,
o bairro é mais pequeno, tem apenas de inserir-se
na colmeia, uma ilha maior, com mais recursos:
algumas calorias para o corpo funcionar.

Dantes havia aqui peixes dourados.
O quintal é agora uma ruína, uma faca velha
cravada no ombro, com a ponta de ferro
a fechar-se atrás de mim. Cruzes fluorescentes
espalhadas pelos cantos sinalizam as paredes
mais instáveis. E ao centro, junto ao tanque,
um pequeno grafito avermelhado. É sangue, não é?

Se não é, podia ser, combinava com o gemido
do baloiço enferrujado, a peça de metal no topo
do sarcófago. Quer dizer, hoje vinha visitá-lo.
Mas a casa aguentará mais do que o peso
de um homem? A memória é um túnel por baixo
da terra antiga. E eu não sei como descer.

Quanta corda ainda temos?


Vítor Nogueira, Modo fácil de copiar uma cidade,
Lisboa: &etc, 2011



[Ribatejo, 18/05/014]

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