quinta-feira, 25 de agosto de 2016

S de Santa Cruz (XIV)


Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, 1963




[ID, 17/08/016]



Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular,
Lisboa, Hiena Editora, 1991

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

S de S.T.T.L.


Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.
                                     
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios mal fechados.
Desceremos o remoinho mudos.


22 de Março de 1950


Cesare Pavese
in Trabalhar Cansa, trad. Carlos Leite,
Lisboa: Cotovia, 1997

domingo, 14 de agosto de 2016

S de Santa Cruz (XIII)





ÁLBUM


Quase nunca apareço, nessas
velhas fotografias: a mão
ou um ombro, desfocados; uma figura
ao fundo,
a sair do enquadramento.
Vejo-me, às vezes, na inquieta
mancha de uma criança, esse estremecimento
no olhar, ou o modo como
o sol derrama o seu ouro na  imagem;
ou aí, nesse golpe longo e branco
sobre a superfície do vidro
na parede atrás. Essa
nódoa de luz
a minha marca, de partida.

Se olharem de perto
para estes instantâneos, toda esta
película a ficar azul, começam
a reparar. Quando finalmente me virem,
vão ver-me por todo o lado: a flutuar
sobre flores, castelos de areia,
folhas caídas, naqueles
bonecos de neve derretendo-se, com as caras
desenhadas a carvão – entre todos
os convidados do casamento,
os convidados do jantar, os convidados
da festa de aniversário – este fumo
na emulsão, o defeito.
Está um fantasma aí; o fantasma levanta-se para ir.


- ROBIN ROBERTSON





[ID, 'The wrecking light', Agosto 2016]

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

S de Santa Cruz (XII)




Rainer Maria Rilke
in O LIVRO DE HORAS, trad. Maria Teresa Dias Furtado,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2009


terça-feira, 9 de agosto de 2016

A de Amor (VI)



Laurel Gray: [on a scene in Dix's script] I love the love scene - it's very good.


Dixon Steele: Well that's because they're not always telling each other how much in love they are. A good love scene should be about something else besides love. For instance, this one. Me fixing grapefruit. You sitting over there, dopey, half-asleep. Anyone looking at us could tell we're in love.



segunda-feira, 8 de agosto de 2016

L de (A) Luz da Sombra (XXV)


Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa. 
E do chão. 


- DANIEL FARIA