[ID, 'Anunciação', Ponta Delgada, 011]
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
A de Amor (XXVI)
ERRATA
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.
Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.
Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.
Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.
MANUEL DE FREITAS
in Terra Sem Coroa, Teatro de Vila Real, 2007
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
O de "O poema ensina a cair" (II)
VERSOS DE CIRCUNSTÂNCIA
eu não entendia
e ela se mexia tanto ao meu lado
e aqueles bancos apertados
o ar condicionado gelando
tudo (os brincos dela,
o meu humor)
mais de uma hora cruzando
ruas, avenidas, parágrafos –
o livro gritando alto
para um mundo ensurdecido
depois de arrumar-se mais
algumas dezenas de vezes
o sol já estava no meio do céu
quando ela se levantou
foi então que percebi que
três pequenos pássaros
voavam em suas costas
- FABIANO CALIXTO
F de Fazer Fotografia (LXXIII)
PHOTOGRAPHY
A fine wind blows into the heart,
And you fly headlong on,
While love within the roll of film
Holds the soul fast by its sleeve.
Bird-like she steals grain by grain
From oblivion - and now?
She does not let you fall to dust,
Even dead you're still alive -
Not wholly but a hundredth part,
In muted tone or sunk in sleep,
As if you wandered through some field
In a land beyond our ken.
All that's dear and seen and living
Makes the same flight as before,
Once the angel of the lens
Has your world beneath his wing.
Arseniy Tarkovsky, 1957
in Andrey Tarkovsky, Bright, bright day,
Londres: White Space Gallery / The Tarkovsky Foundation, 2007
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
S de Solidão (ou C de Comunidade) X
Assim escrevo
alegre e inspirado com a palavra.
Folheio as obras dos velhos e novos
e faço-o confiante. Mas estou cercado
de vocábulos que me atacam pelas costas.
Sou um poeta difícil:
Ausculto a sílaba que contém
o movimento futuro da estrofe.
Sim, a poesia é a menos saudável das ocupações.
E ser poeta não é uma ambição minha:
É a minha maneira de estar sozinho.
António Barahona, Impressões Digitais (1968)
V de Vida (VIII)
"Vous ne pourrez jamais voir cette étoile comme je la voyais.
Vous ne comprenez pas:
elle est comme le coeur d'une fleur sans coeur."
- ANDRÉ BRETON -
[Andrei Tarkovsky, A Infância de Ivan, 1962]
A VIDA
Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.
Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.
Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.
O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrão que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.
Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.
André Breton e Paul Éluard, A Imaculada Concepção,
Lisboa: Estúdios Cor, 1972
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
P de Poética (XXVIII)
faço versos para retardar o acidente coronário
podia fazer ginástica de manutenção que era o mesmo
disse de vez: ao diabo o nome nos índices remissivos!
escrevam teses sobre a prenhez do referente
deixem-me olhar a chuva e deixem-me
palitar os dentes - ut supra
não acerto com o Zeitgeist é escusado (e é inútil)
e passa tanto tempo num minuto
Fernando Assis Pacheco,
Memórias do Contencioso e outros poemas, 1980
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
terça-feira, 11 de outubro de 2016
C de Cicatriz (VI)
Pensei, eu podia ter descido aqui naquele dia, talvez tivesse desenhado um lago tranquilo e as últimas flores de Setembro, e voltado para Londres sem cicatrizes. Embora esta cicatriz faça parte de mim, não quero que desapareça, era algo que faltava escrever no meu rosto, nunca gostei de tatuagens, mas era como se esta linha faltasse, talvez tudo tivesse acontecido para que o meu rosto ficasse acabado...
Ana Teresa Pereira
in Karen, Lisboa, Relógio D'Água, 2016
[ID, Nazaré, 08/10/11]
Sábado, 6 de fevereiro
Estou a ler a tradução francesa de uma série de contos de Henry James. A sedução do outro? Ou o outro que procuramos em nós mesmos? E que no final quando descobrimos que foi um longo passo, um percurso, um tempo interior intensamente vivido tão ao lado do outro, tão com o outro, que num instante por circunstância da história comum se desfaz; se anula por qualquer intempérie quase meteorológica ou por uma caso ou fatalidade que irrompe na vida comum, no dia-a-dia de um ou do outro - tudo vai continuar, quase, como se coisa alguma se tivesse passado. Uma ferida ficou aberta no ar. Está quase em cicatriz. E no início dos inícios, quando tudo chegou ao fim, ou melhor, ao nenhum fim que sempre povoa a história das grandes amizades (...), percebe-se como a partida para o outro, para nós mesmos no outro, na invenção do outro e do outro em nós mesmos, tudo não passou do grande temor pelo desconhecido; um sucedâneo de descida à caverna e de ultrapassagem desse pavor. Olhamos, então, para a cicatriz que restou, para a incisão na pele, na carne, na alma. O outro compensa a realidade, supera-a; é uma ardil com que fintamos a própria existência. Uma espécie de bem-aventurança para contrapesar a esperança, que corrige a raiva ou o pessimismo da fortaleza que nem eu nem o outro, que nenhum de nós já sabe encontrar nos ardis da vida. Sendo estes iguais, exactamente iguais ao tempo da vida.
João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012
segunda-feira, 10 de outubro de 2016
T de (Uma) teoria de pássaros (XIII)
SENHORA
Senhora, há demasiados pássaros
No vosso piano
Que atrai o Outono sobre uma selva
Espessa de nervos palpitantes e libélulas
As árvores em arpejos insuspeitados
Às vezes perdem a orientação do globo
Senhora, suporto isso tudo. Sem clorofórmio,
Descendo ao fundo da madrugada,
O rouxinol, rei de Setembro, informa-me
Que a noite se deixa cair entre a chuva
Burlando a vigilância dos vossos olhares
E que uma voz canta longe da vida
Para suster o espaço despregado
O espaço tão cheio de estrelas que está quase a cair
Senhora, às dez cheira a tabaco de artista
Amais o aroma a corpo de pássaro
Sois um fenómeno ligeiro
Vou-me, solitário, até ao ocaso dos turistas:
É muito mais belo
Vicente Huidobro, Mágica,
trad. de Ricardo Marques,
Lisboa, Língua Morta, 2011
Lisboa, Língua Morta, 2011
domingo, 9 de outubro de 2016
sábado, 8 de outubro de 2016
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
T de Tempo Sem Tempo (XVII)
Porque é que as segundas têm de
estrangular os domingos;
e o outono, o verão;
e o tempo adulto, o tempo mais jovem?
Sob os jardins,
morreram outros jardins.
Atrás do sol,
outros sóis sucumbem,
como roupas velhas num armário.
Ele já não faz perguntas:
apaixonou-se por uma música.
Alain Bosquet
[Trad. ID]
Q de "Que a alegria em mim permaneça" (II)
"Sempre
que vou para o campo, e entro em contacto com a natureza, compreendo que viver é
ver regressar; que cada sensação e cada sofrimento e cada prazer nosso partem,
virginalmente, de uma memória. Quando terá nascido esta emoção que sinto agora
de ver morrer a tarde, embalado no solo, enquanto acaricio a erva? Em que sítio
do mundo terá nascido? De onde veio até mim para que eu a possa sentir deste
modo tão necessário e radical? As emoções, tal como a linguagem, nascem numa
fonte remota do sentir colectivo. Também o ver dos meus olhos e o gostar dos
meus lábios são uma tradição interrompida que eu rezo de novo, e o choro é uma
acção de graças de todos os que me antecederam no conhecimento da dor. […]
Gostaria de te dizer que a memória nos faz e nos desfaz, que a memória é o único
meio que o homem tem para diferenciar umas coisas das outras, para as viver e fazê-las
suas. O que não se recorda, o que não regressa do coração aos sentidos, não se
vive, sente-se. Entre o sentir e o viver está a memória."
Luis Rosales, El contenido del corazón,
1941
[Trad. ID]
domingo, 2 de outubro de 2016
sábado, 1 de outubro de 2016
S de Solidão (ou C de Comunidade) b
7 de Junho de 1979
Compreendi hoje, um pouco melhor, o mistério de solidão. A comunidade tem de estar dispersa, viver na tensão de encontrar-se sem duradouro encontro, cultivar o poder absoluto de estar só, que só ele é inofensivo; é um corpo vivo sem jugo; a comunidade é a diáspora.
Por estes dias sentia-me perturbada, dissolvida na água. Sempre tensa, à procura, em movimento dentro de uma ordem infinita e pré-estabelecida. O trabalho a realizar quotidianamente é mais forte do que conhecer e escrever; estou sempre à espera de poder parar, mas a noite é temporária e ponte para um dia igual. [...]
Maria Gabriela Llansol, Numerosas Linhas - Livro de Horas III,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2013
[ID, Lisboa, 09/016]
XXXIX
E nós somos como os frutos. Pendemos do alto de ramos estranhamente tortuosos e suportamos bem os ventos. O que temos é a nossa maturidade, a nossa doçura e a nossa beleza. Mas a força para tal emana de uma raiz que se propagou até cobrir mundos e mundos em todos nós. E, se quisermos testemunhar a favor do seu poder, então devemos utilizar, cada um, o nosso mais solitário sentido.
Quanto mais solitários houver, mais solene, comovente e poderosa será a comunidade.
Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011
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