quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
B de Bom Ano Novo (II)
A Revista Única do Expresso publicou este balanço das coisas que desapareceram para sempre no decurso da década que agora termina. É verdade que já não há telegramas, nem Concorde, nem Feira Popular, nem filme para a Polaroid que ainda guardo na gaveta porque foi um dos meus objectos mágicos, mas os outros "epitáfios" são um pouco apressados: a Nazaré continua a ser uma feliz excepção aos esforços da ASAE no sentido de proibir o consumo de fritos em plena areia; o giz ainda é uma realidade em muitas escolas (e bem mais ecológico e funcional por vezes); ainda há quem escreva cartas manuscritas (apesar de os alunos desconhecerem, em muitos casos, o significado da expressão "papel de carta"); e a minha rua conjuga, em certos dias e sem qualquer esforço de reconstituição histórica, um engraxador quase cativo, um amolador itinerante e uma costureira de bairro permanente. Sou uma privilegiada - ou se calhar também desapareci para sempre e ainda não reparei...
B de Bom Ano Novo
ENVIO
Vai livrinho e deseja a todos
Flores no jardim, bem-estar a rodos,
Um pichel de vinho, uma pitada de talento,
Uma casa rodeada de relva ao vento,
Um rio ali ao lado sussurrante,
Um rouxinol no sicômoro trinante.
Robert Louis Stevenson
(versão portuguesa de João Rodrigues)
Achei que era um bom poema para desejar um bom Ano Novo - e claro que podem acrescentar outros desejos à lista, embora a "casa rodeada de relva ao vento" me pareça uma ideia deliciosa.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
F de Foi deste poema que te falei (II)
[As duas primeiras estrofes não lembram aquela sequência do Vampyr, do Dreyer, em que ele é transportado dentro do caixão?]
'T was just this time last year I died.
I know I heard the corn,
When I was carried by the farms,
It had the tassels on.
I thought how yellow it would look
When Richard went to mill;
And then I wanted to get out,
But something held my will.
I thought just how red apples wedged
The stubble's joints between;
And carts went stooping round the fields
To take the pumpkins in.
I wondered which would miss me least,
And when Thanksgiving came,
If father'd multiply the plates
To make an even sum.
And if my stocking hung too high,
Would it blur the Christmas glee,
That not a Santa Claus could reach
The altitude of me?
But this sort grieved myself,
And so I thought how it would be
When just this time, some perfect year,
Themselves should come to me.
'T was just this time last year I died.
I know I heard the corn,
When I was carried by the farms,
It had the tassels on.
I thought how yellow it would look
When Richard went to mill;
And then I wanted to get out,
But something held my will.
I thought just how red apples wedged
The stubble's joints between;
And carts went stooping round the fields
To take the pumpkins in.
I wondered which would miss me least,
And when Thanksgiving came,
If father'd multiply the plates
To make an even sum.
And if my stocking hung too high,
Would it blur the Christmas glee,
That not a Santa Claus could reach
The altitude of me?
But this sort grieved myself,
And so I thought how it would be
When just this time, some perfect year,
Themselves should come to me.
Emily Dickinson
F de Fazer Fotografia (VII)
Quando os poetas salvam num poema exactamente aquilo que não conseguimos salvar em fotografia:
[para a Maitê]
Na rua onde moro
junto ao restaurante da esquina
plantaram um pequeno roseiral
na calçada esburacada
houve logo quem ficasse com medo
que subisse o preço das refeições
mas afinal isso não aconteceu
há uma semana que as rosas
vão esmorecendo na calçada
enquanto o medo muda de cor.
Carlos Alberto Machado, REGISTO CIVIL - poesia reunida,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2009
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
C de Convalescença
Precisei de estar em convalescença (aliás, acho que ainda estou) para perceber um pouco melhor isto:
“Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim.”
“Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim.”
Vergílio Ferreira
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
P de Postais de Natal
Muito, muito obrigada pelos postais de Natal de hoje. O mesmo carinho para postais tão diferentes...
... com uma fotografia de Gérard Castello-Lopes;
... com um texto de João Miguel Fernandes Jorge (in Merry Christmas, Averno, 2006):
... com chocolate:
... ou com um filme que faltava na minha lista.
... com uma fotografia de Gérard Castello-Lopes;
"A memória tem que ser nestas coisas de natal uma potência da alma. Ela chega uns dias antes da noite festiva. (...) Vêm por assalto, quase, a Virgem, os Anjos, as Ovelhas, o Burro e a Vaca - todos merecem maiúsculas, pois são como um passar revista aos termos de mais valia fixados desde a mais remota infância, vivem e fazem-me viver em função do seu aparecimento -, o Menino, José, os Reis que seguiram uma estrela e eram Magos. São um indício da divindade da alma, quero dizerm da presença do que ainda resta de divino na minha alma."
... ou com um filme que faltava na minha lista.
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
F de Foi deste poema que te falei:
UM POUCO MAIS QUE HAIKU DE AMOR
Tenho medidos os dias a cigarros, rápidos e imprecisos,
fumados até ao litoral dos teus olhos. Continuo...
no mesmo sítio de sempre, devolvendo
às cadeiras o sorriso emprestado pela familiaridade
dos seus gestos tão pouco poéticos.
Tenho acertado os dias pelos copos e agora
estão - ou estarei eu? - vazios. Vai-me pedindo
mais uma cerveja, que eu vou convocar
certos demónios no espelho da casa de banho e, depois,
beber um pouco de água opaca, lavar bem as mãos, secá-las
e regressar à mesa quatro minutos menos feliz.
Não morras nunca, digo-te, acrescentando logo a seguir
que, mesmo assim, não quero falar da morte,
muito embora - desculpa-me a insistência -
o teu cabelo hoje me pareça mais preto que nunca.
Sorris.
É o que me vale, sabes sempre sorrir tão bem.
Tenho medidos os dias a cigarros, rápidos e imprecisos,
fumados até ao litoral dos teus olhos. Continuo...
no mesmo sítio de sempre, devolvendo
às cadeiras o sorriso emprestado pela familiaridade
dos seus gestos tão pouco poéticos.
Tenho acertado os dias pelos copos e agora
estão - ou estarei eu? - vazios. Vai-me pedindo
mais uma cerveja, que eu vou convocar
certos demónios no espelho da casa de banho e, depois,
beber um pouco de água opaca, lavar bem as mãos, secá-las
e regressar à mesa quatro minutos menos feliz.
Não morras nunca, digo-te, acrescentando logo a seguir
que, mesmo assim, não quero falar da morte,
muito embora - desculpa-me a insistência -
o teu cabelo hoje me pareça mais preto que nunca.
Sorris.
É o que me vale, sabes sempre sorrir tão bem.
David Teles Pereira
in Criatura, n.º 4 (Dezembro 2009)
F de Fazer Fotografia (VI)
Molhado até aos ossos, o fotógrafo celeste parece estranhamente feliz com a sua obra. "Agora estão certas", diz. "Continuam tão belas quanto eram, mas têm também aquela margem de lixo e de desordem sem a qual nada pode ser verdadeiramente deste mundo."
Rosa Maria Martelo, "Lama"
in A Porta de Duchamp, Lisboa: Averno, 2009
sábado, 19 de dezembro de 2009
P de (Um Ano de) Pássaros (IV)
DECEMBER
When the dark hawberries hang down and drip like blood
And the old man’s beard has climbed up high in the wood
And the golden bracken has been broken by the snows
And Jesus Christ has come again to heal and pardon,
Then the little robin follows me through the garden,
In the dark days his breast like a rose.
Iris Murdoch
P de (Um Ano de) Pássaros (III)
Para os postais de Natal deste ano, escolhi uma fotografia do passarinho que decidiu viver no saguão do prédio. Parece frágil, mas regressa todos os dias, ao entardecer, faça chuva ou faça sol. Por isso, achei que era um bom exemplo: desejo-vos boas festas e sobretudo um Ano Novo resistente a tudo, excepto à amizade e à felicidade.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
M de Merry (?) Christmas
UMA ESPÉCIE DE CONTO DE NATAL
Reuniam-se aos domingos à tarde
na leitaria
com os casacos de pele de zebra e os bichos
ao pescoço de olhos de vidro
na juventude tinham sido
criadas de servir
e toda a vinha tinham lutado
por uma boneca loira em cima da cama
com colcha de cetim cor-de-rosa e passamanarias
a ponto de dormirem no chão
transidas de frio
bebiam chá comiam torradas
com muita manteiga
e pediam bolos de creme colorido
uma vez por outra o criado simpático
(havia um outro mas com maus modos para elas)
conseguia arranjar-lhes restos
de bolo de noiva
e as três exultavam então
só por acanhamento não encomendavam
um bolo de noiva para as três
num dia de Natal particularmente frio
sentiram qualquer coisa
nas saias plissadas
era um rato vulgar com um olhar
muito meigo e assustado
afeiçoaram-se logo ao animal
que levaram para casa comovidas
chamavam-lhe o nosso menino lindo
e consentiam-lhe tudo
o rato de noite roía as três bonecas
e as três de manhã iam contemplar os estragos
como aquelas pessoas que se deixam ficar paradas
diante da casa onde se consumou o crime hediondo
ao menos podiam ter arranjado um cão
ou uma criança da Santa Casa
quando o rato adoeceu chegaram a ser insultadas
nas salas de espera das clínicas veterinárias
(a excentricidade nos afectos mais tarde ou mais cedo
sai cara)
o rato ficou internado uns dias
e elas suspeitaram que tinha sido trocado
desconfiaram então muito das instituições
o mundo afinal era uma encenação
e não valia a pena perguntar
se um criado um veterinário ou um bolo de noiva
eram a sério ou a fingir
só se podia tentar averiguar se a encenação
revelava bom gosto ou não
Adília Lopes, DOBRA
Reuniam-se aos domingos à tarde
na leitaria
com os casacos de pele de zebra e os bichos
ao pescoço de olhos de vidro
na juventude tinham sido
criadas de servir
e toda a vinha tinham lutado
por uma boneca loira em cima da cama
com colcha de cetim cor-de-rosa e passamanarias
a ponto de dormirem no chão
transidas de frio
bebiam chá comiam torradas
com muita manteiga
e pediam bolos de creme colorido
uma vez por outra o criado simpático
(havia um outro mas com maus modos para elas)
conseguia arranjar-lhes restos
de bolo de noiva
e as três exultavam então
só por acanhamento não encomendavam
um bolo de noiva para as três
num dia de Natal particularmente frio
sentiram qualquer coisa
nas saias plissadas
era um rato vulgar com um olhar
muito meigo e assustado
afeiçoaram-se logo ao animal
que levaram para casa comovidas
chamavam-lhe o nosso menino lindo
e consentiam-lhe tudo
o rato de noite roía as três bonecas
e as três de manhã iam contemplar os estragos
como aquelas pessoas que se deixam ficar paradas
diante da casa onde se consumou o crime hediondo
ao menos podiam ter arranjado um cão
ou uma criança da Santa Casa
quando o rato adoeceu chegaram a ser insultadas
nas salas de espera das clínicas veterinárias
(a excentricidade nos afectos mais tarde ou mais cedo
sai cara)
o rato ficou internado uns dias
e elas suspeitaram que tinha sido trocado
desconfiaram então muito das instituições
o mundo afinal era uma encenação
e não valia a pena perguntar
se um criado um veterinário ou um bolo de noiva
eram a sério ou a fingir
só se podia tentar averiguar se a encenação
revelava bom gosto ou não
Adília Lopes, DOBRA
domingo, 13 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
V de Viagens (II)
Normalmente, todas as grandes viagens começam com um pequeno esquecimento:
"Terminal 2 do aeroporto do Dubai, 6h30. Embarque para Cabul às 7h na Kam Air.
Esqueci em Lisboa o lenço que ia pôr quando saísse do avião. Compro o mais discreto que encontro (poliéster preto com lantejoulas made in India) enquanto embarcam afegãos para o voo anterior ao meu. Homens de shalwar kamiz com turbante ou taqiyah. Uma mulher numa cadeira de rodas, coberta da cabeça aos pés como um saco preto."
"Terminal 2 do aeroporto do Dubai, 6h30. Embarque para Cabul às 7h na Kam Air.
Esqueci em Lisboa o lenço que ia pôr quando saísse do avião. Compro o mais discreto que encontro (poliéster preto com lantejoulas made in India) enquanto embarcam afegãos para o voo anterior ao meu. Homens de shalwar kamiz com turbante ou taqiyah. Uma mulher numa cadeira de rodas, coberta da cabeça aos pés como um saco preto."
Alexandra Lucas Coelho, Caderno Afegão
B de Biorritmo (VIII)
Sempre preferi o filho ao pai:
Jeff Buckley,"Lilac Wine" (letra e música de James Sheldon)
I lost myself on a cool damp night
Gave myself in that misty light
Was hypnotized by a strange delight
Under a lilac tree
I made wine from the lilac tree
Put my heart in its recipe
It makes me see what I want to see...
And be what I want to be
When I think more than I want to think
Do things I never should do
I drink much more than I ought to drink
Because It brings me back you...
Lilac wine is sweet and heady, like my love
Lilac wine, I feel unsteady, like my love
Listen to me... I cannot see clearly
Isn't that he coming to me nearly here?
Lilac wine is sweet and heady where's my love?
Lilac wine, I feel unsteady, where's my love?
Listen to me, why is everything so hazy?
Isn't that he, or am I just going crazy, dear?
Lilac Wine, I feel unready for my love...
Jeff Buckley,"Lilac Wine" (letra e música de James Sheldon)
I lost myself on a cool damp night
Gave myself in that misty light
Was hypnotized by a strange delight
Under a lilac tree
I made wine from the lilac tree
Put my heart in its recipe
It makes me see what I want to see...
And be what I want to be
When I think more than I want to think
Do things I never should do
I drink much more than I ought to drink
Because It brings me back you...
Lilac wine is sweet and heady, like my love
Lilac wine, I feel unsteady, like my love
Listen to me... I cannot see clearly
Isn't that he coming to me nearly here?
Lilac wine is sweet and heady where's my love?
Lilac wine, I feel unsteady, where's my love?
Listen to me, why is everything so hazy?
Isn't that he, or am I just going crazy, dear?
Lilac Wine, I feel unready for my love...
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
B de Biorritmo (VII)
Uma das minhas preferidas. E tive direito a ouvi-la ao vivo em Paris. Happy birthday, Mr Waits.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
L de Livros que apetece ler à lareira
"Esse Inverno de 1841 foi particularmente rigoroso. O frio veio antes do Natal, e em Janeiro instalou-se uma grande geada, mortalmente calma e contínua. Se alguma neve caía por vezes, era em grãos duros e escassos, mas não havia vento, não havia sol, não havia uma agitação no ar ou nas águas. Um gelo espesso cobria o Sund e podia ir-se a pé de Elsinore à Suécia e tomar café com os amigos, esses cujos pais tinham encontrado os pais dos que atravessavam, agora gelada, essa água ao som dos canhões, quando as vagas foram alterosas. As gentes pareciam fitas de negros soldadinhos de chumbo na infinita planura cinzenta. Mas à noite, quando as luzes das casas e os fracos lampiões das ruas iluminavam apenas um breve caminho no gelo, esta planura branca do mar era toda estranha, como se um sopro de morte varresse o mundo. O fumo das chaminés subia a direito no ar. Nem os mais velhos se lembravam de outro Inverno assim."
Karen Blixen, Sete Contos Góticos
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
F de Feriados Nacionais
(Ruínas do Carmo, Dezembro 09)
Afinal não cresci assim tanto: continuo a adorar os gatos das ruínas do Carmo e a ter medo das múmias no Museu Arqueológico. E vou lá regressar as vezes suficientes para matar saudades do anjo no túmulo de D. Fernando e descobrir o alquimista. Só senti falta da música.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
C de Começar o dia com uma revista nova
DENTRO DAS IMAGENS
Os poemas têm veneno na boca.
Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.
Em que parte do planeta
há mais ódio?
A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.
Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.
São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
porque se esquecem de amar.
Os poemas têm veneno na boca.
Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.
Em que parte do planeta
há mais ódio?
A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.
Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.
São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
porque se esquecem de amar.
Isabel de Sá
in BRILHO NO ESCURO - Revista de Poesia,
nº3 - Inverno de 2009
(Tiragem - 100 exemplares)
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
M de Momento Zen
«A entrevista é interrompida. Pedro Mexia não hesita quando a secretária da Cinemateca bate à porta da sua sala de director para entregar uma vintena de livros: a nova obra. Os livros recém-editados "estão quentinhos", como diz. O entrevistado distrai-se. Abre um exemplar, apalpa-o, folheia-o, confirma se era mesmo o que ele esperava. Perguntámos o que acha. Diz que sim, que está satisfeito. Trata-se de uma nova peça de teatro: "Nada de Dois". Para quem olha de fora, mais parece o pai de um recém-nascido a contar os dedos dos pés e das mãos. A ver se não falta nada. Afinal, está tudo bem. Podemos continuar a entrevista. A falar da vida. Do que há para lá da literatura. »
Entrevista de Ana Soromenho e Christiana Martins,
Revista Única/Expresso (28 Novembro 2009)
sábado, 28 de novembro de 2009
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Z de Zoo (ou S de Saudade?)
Ontem regressei, quase 20 anos depois, ao Jardim Zoológico. Os meus pais tinham desistido de me levar lá, porque eu acabava invariavelmente a chorar em frente do macaco que estava só numa jaula, do urso preso a quem atiravam maçãs, do elefante que tinha de tocar o sino para ganhar a vida, dos flamingos que tinham perdido o rosa das penas ou das sepulturas em miniatura do Cemitério dos Cães. Isto apesar de me tentarem convencer que alguns daqueles animais, se vivessem no seu habitat natural, passariam fome ou matariam a fome a outros.
Houve coisas que não mudaram 20 anos depois. Continuei a sentir o mesmo nó no peito em frente do urso que percorria sem parar os limites da sua prisão ou do tigre branco que me olhou directamente nos olhos.
Mas o que me doeu mais foi sentir o tempo, esses 20 anos e as mudanças que implicaram. Estar tão mais embrenhada nas minhas coisas (o trabalho, a saúde, as responsabilidades, os prazos...) que o sofrimento alheio não me parecesse tão insuportável; ter talvez perdido a capacidade que na infância possuímos de nos entregarmos todos aos outros e aos momentos sem pensarmos em mais nada e muito menos em futuros. E chorar agora perdas concretas, como a da Rebecca, que não está ali, mas de quem me lembrei ao ver as mesmas sepulturas em miniatura da minha infância sem animais de estimação; ou a das pessoas que me levavam pela mão e me consolavam incansavelmente. Os regressos são sempre, mesmo que em parte, impossíveis. Se calhar por isso, não tive coragem de andar no carrossel iluminado que me devolvia o sorriso no final de cada visita.
sábado, 21 de novembro de 2009
W de Whisky
Dizia o Vinicius de Moraes qualquer coisa deste género (juro que nunca vi esta frase citada duas vezes da mesma maneira): "Se o cão é o melhor amigo do homem, então o whisky é um cão engarrafado".
E, embora apreciando a estética oriental (obrigada, F.), mantenho-me fiel, por razões também (ou sobretudo) afectivas, à única destilaria que fiz questão de visitar quando fui à Escócia:
E, embora apreciando a estética oriental (obrigada, F.), mantenho-me fiel, por razões também (ou sobretudo) afectivas, à única destilaria que fiz questão de visitar quando fui à Escócia:
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
A de Aceitação
"Maybe eventually you'll settle for something worse than paradise but better than hell."
Margaret Millar, How like an angel
sábado, 14 de novembro de 2009
C de Começar o dia com um livro novo
o gato espia do telhado
a vida a partir
em cada comboio que passa,
o tempo que se arrasta
na dor metálica dos carris.
é feriado nas mãos,
trago uma canção triste
e o teu rosto no bolso.
a vida a partir
em cada comboio que passa,
o tempo que se arrasta
na dor metálica dos carris.
é feriado nas mãos,
trago uma canção triste
e o teu rosto no bolso.
Renata Correia Botelho, Um Circo no Nevoeiro, Lisboa: Averno, 2009
(Eu ia escolher o último poema do livro, mas o Barnabé, ao meu lado,
fez-me mudar de ideias)
domingo, 8 de novembro de 2009
E de Empréstimos (ou I de Invisíveis Correntes)
Gostaria de me ter lembrado, antes do Diogo, de colocar aqui o "Soneto para Cesário", do Dinis Machado, de quem ainda espero o último policial.
Mas não resisto a deixar aqui este poema, que fui pedir emprestado a outro blog, e que me parece perfeito para dedicar a quem partilha comigo este 4º aniversário de hoje:
IN THE LIBRARY
For Octavio
There's a book called
"A Dictionary of Angels."
No one has opened it in fifty years,
I know, because when I did,
The covers creaked, the pages
Crumbled. There I discovered
The angels were once as plentiful
As species of flies.The sky at dusk
Used to be thick with them.
You had to wave both arms
Just to keep them away.
Now the sun is shining
Through the tall windows.
The library is a quiet place.
Angels and gods huddled
In dark unopened books.
The great secret lies
On some shelf Miss Jones
Passes every day on her rounds.
She's very tall, so she keeps
Her head tipped as if listening.
The books are whispering.
I hear nothing, but she does.
- CHARLES SIMIC
Mas não resisto a deixar aqui este poema, que fui pedir emprestado a outro blog, e que me parece perfeito para dedicar a quem partilha comigo este 4º aniversário de hoje:
IN THE LIBRARY
For Octavio
There's a book called
No one has opened it in fifty years,
I know, because when I did,
The covers creaked, the pages
Crumbled. There I discovered
The angels were once as plentiful
As species of flies.The sky at dusk
Used to be thick with them.
You had to wave both arms
Just to keep them away.
Now the sun is shining
Through the tall windows.
The library is a quiet place.
Angels and gods huddled
In dark unopened books.
The great secret lies
On some shelf Miss Jones
Passes every day on her rounds.
She's very tall, so she keeps
Her head tipped as if listening.
The books are whispering.
I hear nothing, but she does.
- CHARLES SIMIC
L de Longe da Aldeia
A LONDON THOROUGHFARE. 2 A.M.
They have watered the street,
It shines in the glare of lamps,
Cold, white lamps,
And lies
Like a slow-moving river,
Barred with silver and black.
Cabs go down it,
One,
And then another.
Between them I hear the shuffling of feet.
Tramps doze on the window-ledges,
Night-walkers pass along the sidewalks.
The city is squalid and sinister,
With the silver-barred street in the midst,
Slow-moving,
A river leading nowhere.
Opposite my window,
The moon cuts,
Clear and round,
Through the plum-couloured night.
She cannot light the city;
It is too bright.
It has white lamps,
And glitters coldly.
I stand in the window and watch the moon.
She is thin and lustreless,
But I love her.
I know the moon,
And this is an alien city.
They have watered the street,
It shines in the glare of lamps,
Cold, white lamps,
And lies
Like a slow-moving river,
Barred with silver and black.
Cabs go down it,
One,
And then another.
Between them I hear the shuffling of feet.
Tramps doze on the window-ledges,
Night-walkers pass along the sidewalks.
The city is squalid and sinister,
With the silver-barred street in the midst,
Slow-moving,
A river leading nowhere.
Opposite my window,
The moon cuts,
Clear and round,
Through the plum-couloured night.
She cannot light the city;
It is too bright.
It has white lamps,
And glitters coldly.
I stand in the window and watch the moon.
She is thin and lustreless,
But I love her.
I know the moon,
And this is an alien city.
Amy Lowell (1914)
sábado, 7 de novembro de 2009
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
L de Lar (IV)
Para o F. :
A TUA CASA
A tua casa solta um suspiro de ouro.
Eu espero, num lugar entre a porta e o meu medo,
Que à janela venhas sacudir o teu amor.
Aqui na rua as vizinhas olham-nos das suas varandas,
Recolhem os filhos para dentro das saias,
Escondem-se a sussurrar a minha desgraça.
À minha janela espreita melancólica uma casa.
Eu sempre esperei, sem ver outro dia,
Que espreitasses enquanto me crescem as asas.
A TUA CASA
A tua casa solta um suspiro de ouro.
Eu espero, num lugar entre a porta e o meu medo,
Que à janela venhas sacudir o teu amor.
Aqui na rua as vizinhas olham-nos das suas varandas,
Recolhem os filhos para dentro das saias,
Escondem-se a sussurrar a minha desgraça.
À minha janela espreita melancólica uma casa.
Eu sempre esperei, sem ver outro dia,
Que espreitasses enquanto me crescem as asas.
David Teles Pereira
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
F de Fazer Fotografia (II)
domingo, 1 de novembro de 2009
B de Biorritmo (VI)
Thomas Fersen canta "Une chauve-souris" (uma história de amor improvavelmente feliz):
D de Dia de los Muertos (aliás, hoje é especificamente Dia de los Angelitos)
"O resto... o resto era andar pelo mundo anotando mortes."
Manuel Mujica Llainez, Bomarzo
sábado, 31 de outubro de 2009
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
C de Caroço de Azeitona
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
L de Ler (II)
"Começo todas as manhãs com um punhado de versículos*, para que o meu dia tenha um fio condutor. Posso depois dispersar-me durante o resto das horas correndo atrás do que tenho para fazer. No entanto mantive para mim um penhor de palavras duras, um caroço de azeitona para andar a girar na boca."
Erri de Luca, Caroço de Azeitona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009
* No meu caso, substitua-se versículos por versos ou frases. Mas este livro é verdadeiramente luminoso, apesar dos tropeções da tradução e da revisão. O Saramago devia lê-lo para aprender.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
domingo, 18 de outubro de 2009
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
M de (Como é que alguém pode ter) Medo (de mim?)
Uma das muitas coisas que me fazem medo desde pequena: pavões.
Felizmente não são assim tão comuns na cidade, mas ainda assim tenho de circular com cuidado por alguns lugares que adoro: os jardins do Museu da Cidade, o Jardim Botânico da Ajuda, o antigo Jardim das Colónias...
Jardim Botânico da Ajuda, Julho 2009
Felizmente não são assim tão comuns na cidade, mas ainda assim tenho de circular com cuidado por alguns lugares que adoro: os jardins do Museu da Cidade, o Jardim Botânico da Ajuda, o antigo Jardim das Colónias...
Jardim Botânico da Ajuda, Julho 2009
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
M de Maternidade (II)
domingo, 11 de outubro de 2009
sábado, 10 de outubro de 2009
T de Tratado de Pedagogia
LE CANCRE
Il dit non avec la tête
Mais il dit oui avec le coeur
Il dit oui à ce qu'il aime
Il dit non au professeur
Il est debout
On le questionne
Et tous les problèmes sont posés
Soudain le fou rire le prend
Et il efface tout
Les chiffres et les mots
Les dates et les noms
Les phrases et les pièges
Et malgré les menaces du maître
Sous les huées des enfants prodiges
Avec des craies de toutes les couleurs
Sur le tableau noir du malheur
Il dessine le visage du bonheur.
Jacques Prévert
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
B de Biorritmo (V)
Enviaram-me hoje esta prenda. E decretaram oficialmente que este 7 de Outubro tão cinzento voltava a ser um 5 de Setembro cheio de amigos e de sol (com o respectivo protector solar, claro). Merci.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
C de Coimbra (para a Maria Manuel)
JARDIM DA SEREIA
Nem Bach, o pai, foi capaz
de eternizar esta cadência.
Em Byrd, por vezes, reencontro-a.
Junta as folhas uma a uma,
com um pequeno ancinho,
e sorri, distante, aos que se
namoram - furtivos artesãos da morte.
Um cigarro pende-lhe
da boca, todas as manhãs.
Talvez ouça, como nenhum
de nós, o canto da sereia
e estejam livres, afinal,
as mãos presas que nos salvam.
Nem Bach, o pai, foi capaz
de eternizar esta cadência.
Em Byrd, por vezes, reencontro-a.
Junta as folhas uma a uma,
com um pequeno ancinho,
e sorri, distante, aos que se
namoram - furtivos artesãos da morte.
Um cigarro pende-lhe
da boca, todas as manhãs.
Talvez ouça, como nenhum
de nós, o canto da sereia
e estejam livres, afinal,
as mãos presas que nos salvam.
Manuel de Freitas, Juros de Demora, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007
M de "MOSAICO"
Altos e baixos deformam o terreno.
Ervas daninhas apoderam-se das juntas.
Mas o tempo, surpreendente invenção
do mundo antigo, até no desperdício
procurou o equilíbrio: o pavimento
regenera-se, aproveitando a mesma pedra
da calçada original.
Continuam por aqui os destroços
do naufrágio. Todavia, estes nós são mais
complexos, cada vez querem mais corda.
Há um pássaro estendido sobre si,
voando para dentro do abismo.
Há uma janela aberta, pela qual a chuva
se recusa. Que outros elementos
vos parecem deslocados?
Estas são, afinal, as vossas vidas.
Direcções sobre as quais nada sabemos.
Ervas daninhas apoderam-se das juntas.
Mas o tempo, surpreendente invenção
do mundo antigo, até no desperdício
procurou o equilíbrio: o pavimento
regenera-se, aproveitando a mesma pedra
da calçada original.
Continuam por aqui os destroços
do naufrágio. Todavia, estes nós são mais
complexos, cada vez querem mais corda.
Há um pássaro estendido sobre si,
voando para dentro do abismo.
Há uma janela aberta, pela qual a chuva
se recusa. Que outros elementos
vos parecem deslocados?
Estas são, afinal, as vossas vidas.
Direcções sobre as quais nada sabemos.
Vítor Nogueira, Mar Largo,
Lisboa: &etc, 2009
Lisboa: &etc, 2009
domingo, 4 de outubro de 2009
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
A de (Bom) Augúrio
No 1º dia de regresso às aulas, recebi finalmente pelo correio este objecto de desejo:
Pareceu-me um bom augúrio para este ano. Sim, que eu conto o tempo em anos lectivos, mais do que em anos civis; às vezes, até conto o tempo em escolas, para facilitar.
sábado, 19 de setembro de 2009
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
F de Faça você mesmo
Uma prenda de anos deliciosa da Guida:
um "kit" para recriar, na minha varanda, um dos quadros do Fantin-Latour
que tinhamos visto na Gulbenkian.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
R de Riso
Depois das sugestões do Plano Nacional de Leitura e dos novos programas de Português, mais um momento de júbilo:
http://theatro-circo.blogspot.com/2009/09/poesia-contemporanea-portuguesa-da-o.html
Na mesma linha, aproveito para recomendar um livro que me proporcionou 30m de riso: Os Dias de Veneza, de Eduardo Pitta.
http://theatro-circo.blogspot.com/2009/09/poesia-contemporanea-portuguesa-da-o.html
Na mesma linha, aproveito para recomendar um livro que me proporcionou 30m de riso: Os Dias de Veneza, de Eduardo Pitta.
domingo, 13 de setembro de 2009
sábado, 12 de setembro de 2009
sábado, 5 de setembro de 2009
A de Aniversário
Um dos meus alunos disse-me, logo numa primeira semana de aulas, que a sua coisa preferida era fazer anos. Compreendi-o. E vou cumprir escrupulosamente o conselho, na esperança de que ele continue a fazer o mesmo por muito, muito tempo.
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
terça-feira, 25 de agosto de 2009
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
M de Melancolia (e de Ministério da Educação e de M.... e de Melanoma e de Montalbán)
"A veces no se puede elegir entre lo bueno y lo malo. A veces sólo se puede elegir lo inevitable."
Manuel Vázquez Montalbán, Milenio Carvalho
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
terça-feira, 18 de agosto de 2009
B de Biorritmo (II)
"Bewitched, bothered and bewildered" (THE RODGERS & HART SONGBOOK)
Na versão de Ella Fitzgerald:
Ou de Rufus Wainwright:
Na versão de Ella Fitzgerald:
Ou de Rufus Wainwright:
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
F de Férias
SE ALGUM DIA VOLTARMOS À NAZARÉ
Há alguns anos
antes de virmos para o rio Kamp pescar garoupas
era costume besuntarmos o corpo com argila
fazermos dos ossos estigma
como a pegada do cavalo no Sítio
que tu nunca conseguiste ver
Procurávamos lagostas nas rochas
protegíamo-nos com castelos de areia
Quando uma onda maior nos ameaçava
era na corda das bóias que sabíamos estar a salvação
dum iminente afogamento
Resolvíamos sopas de letras com areia
jogávamos cartas contra o vento
brindávamos as barracas de pijama
com baldes cheios de água salgada
e
só uma vez
com o mijo que nos empalideceu
Mas
de tudo
o que mais apreciávamos
era podermos vazar o lixo depois do jantar
largar o balde junto ao contentor
e fugir noite dentro em correria
à procura duma liberdade
que sabíamos estar à nossa espera nas ruas
Se algum dia voltarmos à Nazaré
será com a carteira recheada de marisco
com as unhas dos pés presas ao alcatrão
e com as mãos atadas aos recibos verdes
a que votámos a liberdade dos nossos dias presentes
Isto
se algum dia lá voltarmos
coisa de que duvido por já não me parecer
possível
Há alguns anos
antes de virmos para o rio Kamp pescar garoupas
era costume besuntarmos o corpo com argila
fazermos dos ossos estigma
como a pegada do cavalo no Sítio
que tu nunca conseguiste ver
Procurávamos lagostas nas rochas
protegíamo-nos com castelos de areia
Quando uma onda maior nos ameaçava
era na corda das bóias que sabíamos estar a salvação
dum iminente afogamento
Resolvíamos sopas de letras com areia
jogávamos cartas contra o vento
brindávamos as barracas de pijama
com baldes cheios de água salgada
e
só uma vez
com o mijo que nos empalideceu
Mas
de tudo
o que mais apreciávamos
era podermos vazar o lixo depois do jantar
largar o balde junto ao contentor
e fugir noite dentro em correria
à procura duma liberdade
que sabíamos estar à nossa espera nas ruas
Se algum dia voltarmos à Nazaré
será com a carteira recheada de marisco
com as unhas dos pés presas ao alcatrão
e com as mãos atadas aos recibos verdes
a que votámos a liberdade dos nossos dias presentes
Isto
se algum dia lá voltarmos
coisa de que duvido por já não me parecer
possível
Henrique Manuel Bento Fialho
in Canto de Mar - uma antologia de poesia sobre a Nazaré
(Biblioteca da Nazaré)
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
S de Sorte (II)
Perguntaram-me, enquanto esperava pelo autocarro:
"A menina quer comprar um bocadinho de sorte?"
(não era um poeta, mas um literal cauteleiro)
"A menina quer comprar um bocadinho de sorte?"
(não era um poeta, mas um literal cauteleiro)
domingo, 2 de agosto de 2009
T de Tradução
Um dia, gostava de ver editada em português uma antologia da Amalia Bautista:
AVARICIA (in Pecados)
El avaro jamás será dichoso.
El avaro malvive y no se gasta
ni una de sus monedas apiladas,
inservibles, mugrientas.
Y eso es imperdonable.
Porque el avaro, como todos,
morirá qualquier día, pero sin haber visto
el brillo de los ojos más amados
al abrir un regalo.
AVARICIA (in Pecados)
El avaro jamás será dichoso.
El avaro malvive y no se gasta
ni una de sus monedas apiladas,
inservibles, mugrientas.
Y eso es imperdonable.
Porque el avaro, como todos,
morirá qualquier día, pero sin haber visto
el brillo de los ojos más amados
al abrir un regalo.
[para a Ângela, que me disse que eu não padecia deste pecado]
V de Vício
Se um dia escrever uma tese, será provavelmente sobre policiais. E, se me pedissem, até traduzia policiais de graça:
"Death. As soon as the word entered her mind she knew that it was the real one; the others going round on the carousel had been merely substitutes for it."
"Death. As soon as the word entered her mind she knew that it was the real one; the others going round on the carousel had been merely substitutes for it."
Margaret Millar, A stranger in my grave
segunda-feira, 27 de julho de 2009
H de Humanidade
PRESÉPIO ANIMADO DA RIBEIRA GRANDE
Ainda todos se lembram do dezembro de 96.
Era dia de natal. Na estrada que leva ao norte
da ilha, sob grande tempestade, trôpego, na
berma, um gato de pelagem branca. Parecia
ferido. Fêmea branca, a que chamariam persa
de pêlo curto, tinha uma chaga na orelha
alastrava pelo crâneo e pela fauce e
olho. Massa disforme de carne e sangue,
pancada de carro ou parede de muro desabado
a ferida. Animal muito manso, delicado e
tímido, deixou que me aproximasse
lhe pegasse e a trouxesse para dentro do
meu carro. Tremia de frio e também de medo e
dor. Enchuguei-a com um pedaço de
flanela, dei por mim chamando-lhe
Princesa: era muito nova, pequena,
de um branco que resistia ao lixo da terra
da quase sarjeta de onde a tirei; olhos
claros, amendoados. A mais
delicada e triste das gatas com a horrível
ferida a alastrar, implacável. Uma
gangrena que exalava cheiro pestilento
- a princesa branca apodrecia no dia
de natal. Havia uma caixa de cartão
no banco traseiro, coloquei-a dentro e
descobri a casa do veterinário. Era uma pasta
de sangue, carne e urina tão assustada
estava. O médico agarrou-a - eles já
cheiraram muita pestinência, os veterinários -
fez-lhe festas. Era muito meiga. Não
pude olhar enquanto a matava; meteu o
corpo branco, ainda quente, na caixa de
cartão. Levei-a, morta, e com aquele cheiro;
já quase noite. Enterrei-a num pequeno
jardim, bem perto do presépio animado da Ribeira
Grande, que nesse fim de dia de natal ainda
visitei. As lágrimas de nada servem, nem
por uma gata branca a que chamei Princesa,
durante uma escassa hora, a debater-se
com a morte. O sangue, a urina
o cheiro da gangrena. Este é o inferno
dos mortais, a sua beleza e fragilidade. A
morte é uma coisa e a vida, a mesma
coisa. A face da morte é o reflexo da
vida quando se debruça sobre a superfície
da ilha. Luze em todos os natais, suave,
esbatida de traços - palavra de traição
que rodeia o medo, o abandono.
João Miguel Fernandes Jorge
sexta-feira, 17 de julho de 2009
L de Ler ( = aprender = ser)
Um livro, em que leio frases que poderiam nortear a minha maneira de trabalhar:
Paulo da Costa Domingos, Narrativa, Lisboa: frenesi, 2009
Paulo da Costa Domingos, Narrativa, Lisboa: frenesi, 2009
"Porque a leitura faz de nós melhores pessoas; faz de nós pessoas. Aprendi eu isso."
"Ler, não chega; há que ver e ouvir pela abertura do coração, comovidamente."quinta-feira, 16 de julho de 2009
M de Morte
Um livro:
(com capa - belíssima - de José Francisco Azevedo)
Uma citação:
"A morte da minha mãe foi sentida de forma diferente. É um vazio assombroso. É uma perda contínua que não se atenua. Um susto. E agora? Muitas vezes penso que tenho de falar com a minha mãe sobre aguma coisa. Penso, vou dizer à minha mãe que... e depois lembro-me que ela já não existe. E agora? Falo com quem? A morte de uma mãe é uma coisa muito estranha. É quase uma dor física. É como cair num buraco de repente e estar tudo preto à volta."
Maria do Céu Guerra, em entrevista à Revista Única, de 18 de Julho de 2009.
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