segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

o tempo passa como cinza branda sobre os cabelos, aprisionando-os numa velhice futura - sem fim.
em meu ossos a terra iniciou o seu trabalho, lento, devorador. o ar corrompe-se na dor dos fogos-fátuos.
evapora-se o coração do amigo morto.
o início da vida esteve, talvez, na harmonia de uma gota de água que fecunda um grão de areia. jamais saberemos como nasceu o desejo do poema.
por isso, quando começares a pensar em mim, ou a desejar-me ainda, apenas encontrarás as arestas escuras dos objectos que me pertenceram - enquanto toda a fundura da terra ter-me-á absorvido.
o meu corpo é agora húmus e ausência. sombra a perturbar-te a vigília do sono - bolor que te cresce, luminescente, entre os dedos. e a minha língua, silenciosa, como a serpente, deslizará noite adiante em teu peito, à procura de alimento e de sossego.
mas não são os mortos que se alimentam com os vivos. são os vivos que se escondem na memória o peso dos mortos.
que nome te resta se eu já aí não estou para te chamar?
e os meus olhos cegaram com a terra que os bebeu.



[...]



o dia vem lentamente na incandescência de um fio de poeira suspensa. atravessa o quarto vazio, acende-te o rosto.
abro um pouco a boca e deixo cair a moeda de ouro. nos meus olhos descobrirás como é grande a tristeza do mundo.
lá fora é outra vez verão.

  
Al Berto, Canto do amigo morto,
com desenhos de José Pedro Croft,
Lisboa: Europália, 1991

S de "Semantics won't do" (VIII)


domingo, 30 de dezembro de 2012

D de "deve ser/ com certeza um sítio muito triste" (IV)

 
[30/12/12]
 
 
 

[18/11/12]
 

sábado, 29 de dezembro de 2012

F de "(Une) famille d'arbres" - II e


 
 
 
"Mostrar o que não está é uma forma de conseguir ver?"
 
Joaquim Manuel Magalhães, A poeira levada pelo vento (1993)


sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O de "Oh! qu'ils sont chers, les trains manqués/ Où j'ai passé ma vie à faillir m'embarquer!..." (II)


H de "He loved beauty that looked kind of destroyed" (VI)

[...]

Foi fácil entendermos que depois
com dois cafés e um cigarro
a conversa sobreviveria. Que
dos dedos cor de azeite na toalha
qualquer verso depois recordaria
a curvatura firma da nuca,
o fim de tarde, o quintal, a alvenaria.
Assim percebemos que a beleza
é uma coisa sem nome, uma questão
inteiramente vazia e nos arranca
de milagres mortos, vai com as cidades
por planícies sem rumo e desconhecida
na sua tinta de vozes que nos dizem
não haver quem sinta nem haver a vida.

[...]



Joaquim Manuel Magalhães, A poeira levada pelo vento, Lisboa: Editorial Presença, 1993
[Poema reencontrado na leitura de Silvina Rodrigues Lopes, Literatura, Defesa do Atrito
Belo Horizonte: Chão da Feira, 2012] 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

E de Economia da arte


M de "My eyes are a baptism" (II)

L de (A) Luz da Sombra (XXXIV)


[...] Já as minhas linhas a lápis andam bastante fracas — mas o meu pensamento ainda está tão nu e tão terrivelmente sensível — que tenho medo de lhe tocar. O meu coração está perto de si, pelo menos o que resta dele! — e é tão pouco, que prefiro deixar-lho em depósito em vez de o pôr a uso, com medo de o esgotar: é, pois, o meu bom e velho corpo de gato que se roça na sua poltrona, na esperança de lhe arrancar algumas centelhas. — Compreende-me o suficiente, amigo, para não me pedir mais do que isso. 

Também não encontrei nada, digno de lhe ser repetido, na inspecção que faço todas as segundas-feiras dos jornais e das revistas — excepto, na Revue des deux mondes de 15 de Maio, um artigo de Montégut em cujas quatro ou cinco primeiras belas páginas pude sentir e ver com emoção o meu livro. Ele fala do Poeta moderno,  do mais recente, que, no fundo, "é acima de tudo um crítico". É exactamente isso que constato em mim — só consegui criar a minha Obra por eliminação, e qualquer verdade apreendida nascia apenas da perda de uma impressão que, depois de cintilar, se consumira e me permitia, graças às trevas que libertava, avançar mais profundamente na sensação das Trevas Absolutas. A Destruição foi a minha Beatriz. 

[…]



Stéphane Mallarmé, "Carta a Eugène Lefébure", 17 de Maio de 1867

[Via Luis Manuel Gaspar / 
Trad. ID]

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

F de Fazer Fotografia (LXXII)

[...]

O enigma não tem explicação. Mas faz parte das aspirações mais elevadas do homem o propor enigmas que o celebrem. A arte radica aí. Como manifestação artística, a fotografia debate-se com o problema da proximidade. O que está ao alcance da objectiva, como o que está ao alcance da mão ou do discurso, pode aparecer como "o-que-está-diante-de-nós", o objecto, por definição. Ora, tal como o poeta se serve de palavras para aceder à dimensão não objectiva das coisas, assim o fotógrafo se serve das propriedades da luz e dos dispositivos técnicos que utiliza para produzir o seu apelo ao que lá não está, mas é, na distância - a energia que dá às coisas a sua presença não presente. 

Tudo o que nos toca, toca-nos por essa presença que confere a cada coisa uma reserva que a torna inapropriável. Ela é a única em cada momento, porque único é o seu potencial para fazer parte de um tecido precário e frágil aos nossos olhos, mas ao qual podemos supor a consistência do que inexoravelmente se transforma por acção de apelos, choques, correntes, que desde o ponto mais distante chegam até ali e garantem o milagre da diversidade das formas. 

[...] A fotografia, como fixação de instantes, dá-nos imagens onde as diferentes velocidades de transformação estão suspensas. Uma pedra ou uma flor possuem aí o mesmo grau de imortalidade. É sobre essa capacidade de persistir como condição fundamental de tudo o que é, que cada coisa pode ser a alegria de um tempo próprio, incomparável - pode ser apenas a intensidade do seu fulgor. [...]



Silvina Rodrigues Lopes,  "Escolher pensar"
in Gratuita, vol. 1, Belo Horizonte/Lisboa: Chão da Feira, 2012

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

R de Regresso ao real (II)

 
 
[Lisboa, 25/12/12]
 
 
 

[Coimbra, 18/12/11]

C de (A) Comunidade (III)

"[...] Os amigos não compartilham alguma coisa (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto): eles são con-divididos pela experiência da amizade. A amizade é o compartilhamento que precede qualquer divisão, porque o que há para partilhar é o próprio facto de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objecto, esse con-sentir original, que constitui a política.
 
[...]"



Giorgio Agamben, "O amigo",
trad. de Bernardo Romagnoli Bethonico / rev. de Marcos Visnadi
in Gratuita, vol. 1, Belo Horizonte/Lisboa: Chão da Feira, 2012 

H de "He loved beauty that looked kind of destroyed" (V)


[...] Nenhum dos homens que, de boné na mão, vejo à porta de casa quando passo a cavalo ao fim da tarde, imagina que o meu olhar [...] se passeia de com uma nostalgia silenciosa pelas tábuas podres debaixo das quais eles costumam procurar, depois da chuva, as minhocas para a pesca; que esse olhar mergulha através das grades da janela estreita no interior abafado da casa onde, a um canto, a cama baixa com lençóis de cor parece sempre esperar por alguém que vai morrer, ou que há-de nascer; que os meus olhos se demoram nos cães jovens e feios ou no gato que se esgueira, coleante, por entre vasos de flores partidos; e que esse olhar busca, sob todos esses objectos pobres e grosseiros, espelho de uma vida rústica, aquele cuja forma discreta, ali abandonado, aquele cuja essência muda possa tornar-se a fonte daquele êxtase enigmático, sem palavras e sem limites. Pois o meu sentimento de felicidade inominável virá mais facilmente de uma fogueira de pastores distante e solitária do que da contemplação do céu estrelado; mais do cantar de um último grilo que já sente a morte no vento outonal que empurra as nuvens de inverno sobre campos desertos do que do eco majestoso de um órgão. [...]



Hugo von Hofmannsthal, Uma Carta - A Carta de Lord Chandos
trad. e posfácio de João Barrento, 
Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2012

domingo, 23 de dezembro de 2012

M de "My eyes are a baptism"


 
 
[Obrigada, Luis]


S de Sense of Snow (X)


O SILÊNCIO ESPERADO



Agora que vi a neve já posso morrer
de uma morte branca e imaculada
que vai reunir a sombra e a claridade
na vertigem do derradeiro enlace.
Com o seu sopro fremente e lábios frios
ela é o silêncio esperado e sepulta na terra
o amor audacioso e o sonho insensato
como quem esconde um passarinho morto
dos olhos do passante que atravessa o parque.


Lêdo Ivo (1924-2012),
Antologia Poética, Porto: Edições Afrontamento, 2012

E de Espera (XXVIII) - 4º Domingo do Advento

[...]

O jardineiro não tinha prenda para dar à criança, então tirou uma chave do bolso e disse: "Esta é a chave da torre. Na noite de Natal vou abrir-te a porta."
Antes de escurecer, ele e a criança subiram a escadaria para a torre, a chave rodou na fechadura, e a porta, como a tampa duma caixa secreta, abriu e deixou-os passar. O quarto estava vazio. "Onde estão os segredos?", perguntou a criança, olhando para as vigas amalgamadas e para os cantos das aranhas e pelos vidros plúmbeos da janela.
"Já basta eu ter-te dado a chave", disse o jardineiro, que acreditava estar a chave do universo escondida no seu bolso juntamente com as penas dos pássaros e as sementes das flores. 
A criança pôs-se a chorar porque não havia segredos. Explorou repetidamente o quarto vazio, raspando o pó com o pé à procura dum alçapão incolor, batendo nas paredes sem tabiques pela voz cava de um quarto além da torre. Sacudiu as teias da janela, e olhou através do pó para a noite de Natal que nevava. Um mundo de colinas estendia-se ao longe até ao céu uniforme, e os cumes de montes que nunca vira alçavam-se ao encontro dos flocos que caíam. Bosques e penhascos, vastos mares de terra árida e uma nova vaga de céu montanhês deslizando adentro das faias negras, apresentavam-se à sua frente. Para oriente ficavam os contornos de inomináveis criaturas dos montes e um antro de árvores.
"Quem são aqueles? Quem são aqueles?"
"São os montes de Jarvis", disse o jardineiro, "que estão desde o princípio".
Pegou na mão da criança e levou-a da janela. A chave rodou na fechadura.
Nessa noite a criança não dormiu bem; havia poder na neve e na escuridão; havia música invariável no silêncio das trevas; havia um silêncio no vento galopante. E Belém estivera mais próxima do que esperava.

[...]


Dylan Thomas, Uma visão do mar e outros contos,
Lisboa: Vega, s/d

sábado, 22 de dezembro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXIX)

9


o homem vendia
sacas
sacas de plástico grosso
com aqueles quadrados grandes
vermelhos e azuis

apregoava
na Praça da Figueira
muito alto
um barítono aspirado profundo
que ecoava
e às vezes
fazia estremecer
as crinas do cavalo
da estátua

isto era
há dois três anos
talvez há quatro
ou há mais

no ano passado
tinha as sacas no braço
mas pouco apregoava
e baixo
os supermercados
vendiam sacas dessas
baratas e mais elegantes
tinham motivos de fruta estampados
fruta rara e cara

o tom da pele
queimada
do dia inteiro ao sol
era ele
a cara dele
mas vê-lo
faz empalidecer
é informação a mais
sobre a vida
subterrânea
em pleno dia

foi ontem mesmo
não sei
o tempo passa depressa
mas o medo suspende o tempo

silencioso
a cara reduzida
como a tsantsa
do conto de Sandoz
e o corpo muito vergado
sem nada para vender
sem pedir nada
encostado ao muro
dobrado
em busca
dum ponto qualquer
no chão
um ponto
para mim invisível
que o atraía
como um íman
prestes a apanhá-lo
lá estava ele
no lugar de sempre

falta ainda dizer
que o homem é cego

para onde vai ele
à noite



Alberto Pimenta,  De Nada,
Lisboa: Boca, 2012

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

M de Memória (III)



Henri Cartier-Bresson, Cidade do México, 1964

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

M de Memória (II)


[Lisboa, 19/12/12]

O de "O mundo está escuro: ilumina-o" (VIII)


Terminam assim dois poemas, 
partilhando a luz:



“I let it go, then I light the candle.”
Louise Glück



"Não falámos. Acendemos a luz."
Yannis Ritsos
INELUTÁVEL



Tarde sombria como um bolso vazio. No fundo
do bolso um buraco doce, penugento. Por lá
passas um dedo em segredo, tocas a própria coxa
como se tocasses outro corpo, maior, estranho,
profundo - o corpo da noite ou da tua morte.
Por esse buraco caem as moedas todas,
mesmo as de oiro, cunhadas com a efígie
esplêndida e jovem do Príncipe dos Lírios.


Yannis Ritsos traduzido por Eugénio de Andrade
in Trocar de Rosa, Lisboa: Na Regra do Jogo, 1980

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XXXIII)

RESTOS
 
 
 
Não tenho nada, nem sequer recordo nada - disse.
Uma época sobreposta a outra - cores desmaiadas,
um cheiro a fruta podre, o meio-dia
e a cal deslumbrante. Uma noite,
ao acenderes um fósforo, consegui ver
aquela mancha pequenina, escondida
sob a tua orelha. Apenas isso. O resto,
o vento o arrasta para debaixo das árvores,
juntamente com os guardanapos de papel e as folhas de videira.
 
 
 
Yannis Ritsos, Antologia,
sel. e trad. de Custódio Magueijo,
Coimbra: Fora do Texto, 1993

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

M de Música para os meus olhos (XXXVI)


REGRESSO
 
 
 
As estátuas foram as primeiras a partir. Depois
foi a vez das árvores, dos homens, dos animais. O local
tornou-se deserto. Não havia senão vento.
Jornais e lixo corriam pelas ruas.
À noite, as lâmpadas acendiam-se sozinhas.
Um homem chegou, deitou um olhar em redor,
tirou uma chave, enterrou-a no chão
como se a devolvesse a qualquer mão subterrânea
ou plantasse uma árvore. Depois ergueu-se, subiu
a escadaria de mármore e demoradamente olhou a cidade.
Uma a uma, com parcimónia, as estátuas regressaram.
 
 
Yannis Ritsos traduzido por Eugénio de Andrade
in Trocar de Rosa, Lisboa: Na Regra do Jogo, 1980
 
 
 


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

R de Rezar na era da técnica (IX)

1

Senhor, já me tiraste o que eu mais queria.
Ouve outra vez, Senhor, meu coração clamar.
Fez-se a tua vontade, meu Deus, contra a minha.
Senhor, já estamos sós meu coração e o mar.


 
*



2

Todo o amor é fantasia;
ele inventa o ano, o dia,
a hora e a melodia;
inventa o amante e, mais,
a amada. Não prova nada,
contra o amor, que a amada
não tenha existido jamais.



António Machado traduzido por Eugénio de Andrade
in Trocar de Rosa, Lisboa: Na Regra do Jogo, 1980
 

sábado, 15 de dezembro de 2012

J de Janelas (V)


A CANÇÃO DE ORPHEU - O VAZIO PAGÃO


Negro sobre negro. Desce a faixa azul vibrate
fogo branco, vermelho cortado por lista branca "não
quero monumento nem catedrais, quero uma escala
humana para um grito humano" - cor de carne,
branco-sujo, leve cinza, "girassol desventrado para reter o
alimento", junto aos murais
públicos de Pompeia, um braço caído sobre a biblioteca
laurenciana, janelas cegas, opressiva atmosfera. Sentir

depois que estão presos
numa sala onde as portas foram tapadas com tijolo; resta
bater com a cabeça contra a parede

impensável mistura de cor: sangue-de-boi e negro; o largo
traço do quadrado, o rectângulo: cinza, azul, alvaiade.
Detritos da vida quotidiana: cebo, feltro, guerra, corpos
abatidos - madeira e bronze - finalidade e morte.


João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012




[Lisboa, Fevereiro de 2012] 

S de "Semantics won't do" (VII)

C de Começar o dia com um livro novo (XX)

Nada procuro
senão o sítio

onde atrasar o poema
e aquela sombra sem culpa

de quem leva ao coração
toda a luz que a mão espalha.



José Carlos Soares
in  Nós, os desconhecidos, Lisboa: Averno, 2012


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

P de (The) Privacy of Rain (XLI)


Não sei se por maldade ou esquecimento
não fui chamada à arca. O fim do mundo
durou quarenta dias e quarenta
noites. Mas alguém fez com as suas mãos
doce balsa que me evitou a morte. 


Amalia Bautista, Estou Ausente,
trad. de Inês Dias,
Lisboa, Averno, 2013




[Inês Dias, São Miguel, 14/08/12]

A de À falta de mar - II b

PACIFIC
Dobrei a esquina do Pacific.
Estava numa das montras. O
vestido negro - descalça
- marcava o sabor do seio
pequeno. As costas, oferta por
inteiro a quem a via do outro
lado do vidro
ao vencer dos passos da rua que
levava ao canal. Motores
de barcos, campainhas de bicicletas
a pressão dos pedais sobre o
rolar da corrente
o músculo tenso das pernas.
Vermelho, rosa gritado, ciclame
os mais vestidos, mas negro
o trapo que cobria a sua carne
(fio estreito de prata no rodeio
do pescoço) e a despia
de modo tão igual ao imaginável
som de trompa marinha
a quem julgasse justo o preço do
trabalhado prazer.
(Se a refiro, foi porque ao final
da tarde a voltei a ver - um
casaco cobria parte do vestido -
em Rembrandtplein, a uma mesa
do Café Schiller
onde tantos anos sempre voltei.) E
as noites
ficarão imensas e mais tristes. Um
ramo de olmo rasava a água que
corria dos seus olhos para os
canais de Amesterdão e a raiz da
sua carne era o sustento
permeável dos diques.
João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

C de Começar o dia com um livro novo (XIX)




Epígrafe de:
Lawrence Durrell, Mountolive, Lisboa, Editora Ulisseia, 1961
 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

P de "Pássaros de acaso" *

Para o Miguel,
no dia da sua primeira audição:





* De um poema de Carlos Poças Falcão

C de Cicatriz (IX)

Temos um só corpo,
Singular, solitário,
A Alma teve que baste
Ali dentro fechada,
Caixa com olhos e orelhas
Do tamanho de um botão
E pele - costura após costura -
Cobrindo a estrutura óssea.

[...]



Arsenii Tarkovskii, "Eurídice"
in 8 Ícones, trad. Paulo da Costa Domingos, 
Lisboa: Assírio & Alvim,  1987

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

P de (The) privacy of Rain (XL)


 
Em Lisboa,
a propósito de um poema de Joan Margarit.
 

C de (A) Comunidade (II)

PREMIÈREMENT - IV


Je te l'ai dit pour les nuages
Je te l'ai dit pour l'arbre de la mer
Pour chaque vague pour les oiseaux dans les feuilles
Pour les cailloux du bruit
Pour les mains familières
Pour l'oeil qui devient visage ou paysage
Et le sommeil lui rend le ciel de sa couleur
Pour toute la nuit bue
Pour la grille des routes
Pour la fenêtre ouverte pour un front découvert
Je te l'ai dit pour tes pensées pour tes paroles
Toute caresse toute confiance se survivent.


Paul Éluard

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXVIII)


5


     Memórias, sonhos, encontros, desencontros. As marcas incisivas do prazer - e do conhecimento da dor. O rio subterrâneo do furor poético a desaguar no mar de palha deste país à beira-mercado comum plantado. Tralhas, mapas, casas, bichos. A flagelação irónica de um lusíada coitado (é fado nosso) desconfortado no fato cívico - e o ímpeto de bomba agarrado pelo rabo. Sexo q.b. e baba ternurenta. Cervejas agoniadas. Noites de bláblá. A máquina por vezes engripada de reinvenção do dia claro (igual à noite antiquíssima) numa lisboa cesárica, nuns bons e maus cheiros de província havida. Dúvidas, fragmentos, resíduos, desarticulações. Quem é este do cântico jugulado? Quem, na essencial totalidade? Quem, na irada moderação? Quem, no nem por isso invocado direito ao erro próprio tão idêntico a sabedoria? Orfeu ensaia o canto, envolto em treva e algazarra. "Trata-se pois de uma prática de amor". E morte.


Vitor Silva Tavares, "Noves Fora, Sete"
in Eduardo  Guerra Carneiro,  Como quem não quer a coisa,
Lisboa:  &etc, 1978

P de Poética (XXXV)




ESTE LIVRO ESCURO
- sobre um álbum de Moriyama Daido


Este livro escuro do tamanho de uma caixa de cinzas
é um memorial após outro, página após página
de instantâneos, como se pudéssemos ser cinemáticos,
como se a visão nunca fosse uma rasura, esse negro metafísico.

Se fôssemos ídolos na Hollywood que imaginamos, carne tonificada,
prata escorregadia ou, melhor, tremeluzindo com os aplausos dourados
dos dias a passarem, página após página,
nunca teríamos duvidado do fotográfico,

nunca teríamos desejado o abandono de um poema.


John Mateer, Este Livro Escuro
Lisboa:  Averno, 2012

domingo, 9 de dezembro de 2012

E de Espera - XXVI b

"[...] A poesia, tal como a entendo, é um encontro firme e inaugural - connosco, mas também com o mundo. Pouco importa, no fundo, se esse encontro único e irrepetível assenta num grito, num murmúrio ou numa exclamação aparentemente despropositada. Serena ou agressiva, na forma como chega até nós, a poesia só me interessa se causa desconforto, se consegue interromper ou questionar o processo de morte e apagamento a que nos fomos acomodando. Sim, ela fulgura - no terror do meio-dia ou no escuro mais escuro da noite. Não importa assim tanto como, ou com que palavras - desde que fulgure, sozinha. Talvez a poesia, em rigor, não sirva para nada; mas já me salvou muitas vezes a vida. Isto que vou perder."

 
Manuel de Freitas, Cólofon
Lisboa: Fahrenheit 451, 2012
 

E de Espera (XXVI)

E nasceu uma nova editora:




FAHRENHEIT 451

A de Anjos caídos (V)

ANJOS APAIXONADOS



Quando os anjos se apaixonam
dansam nas cabeças de alfinetes,
lançam-se em bolas de fogo, ou permanecem
submersos na poça durante horas.

Por vezes até golpeiam os punhos
com lâminas de barbear ou lascas de madeira
não conseguindo, claro, rasgar a delicada pele.

Pois, na ausência de sofrimento ou de entusiasmo,
de que outro modo emulariam o nosso amor?


Pat Boran
in Grisu n.º1, trad. Alberto Gomes,
Guimarães, Novembro  de 2012

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

M de (O) Mistério da Estrada de Sintra (IV)

ESTRADA VERMELHA


Para a Inês Dias e a Maria de Jesus



Não se vai a Sintra; deve-se
ficar lá, de preferência no Lawrence's
e num quarto virado para o bosque.

Esta tarde, porém, regressámos.
Depois das francesinhas
e de vários holocaustos.

Não sei se vem daí a tristeza
que se me colou aos ossos,
indiferente aos projectos que traçámos.

Como se ainda houvesse salvação
nas letras, pelas letras,
e pudéssemos exterminar o nojo.

Não é provável que Gervásia,
a felina estrábica,
consiga sobreviver à leucemia.

O dia findava, morria connosco,
e, em tons de rosa estridente,
um cão celeste abanava a cauda.

Varria, para sempre, impérios e constelações.


Manuel de Freitas
in Grisu n.º1, Guimarães, Novembro de 2012

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

P de (The) Privacy of Rain - XXXIX c



Hoje, no regresso a casa.

P de (The) Privacy of Rain - XXXIX b

P de (The) Privacy of Rain (XXXIX)



"[...] Depois vai para a janela espreitar a chegada da cheia, pensando que ela não atingirá o terceiro andar. Vê uma onda de lama a encher a rua com a violência e a rapidez de uma manada. As águas uivam como um animal. Levam tudo à frente. Depois, escoam-se. O que Mateus presencia é um deserto, uma coisa parada após um grande fulgor. Parece-lhe que a natureza falara com ele, dando-lhe a entender que a casa onde ele habita está protegida por uma felicidade incompreensível."

 
Jaime Rocha, A Rapariga Sem Carne
Lisboa: Relógio D'Água, 2012

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

domingo, 2 de dezembro de 2012

O de Outono (XIV)




Arrumar o Outono,
hoje a caminho da minha livraria preferida.

 
 
 

S de Solidão (ou C de Comunidade) LIV

HORÓSCOPO



Primeira hora da tarde… Cemitério… E o vento cortante
como estilhaços de um osso na tábua do talhante.
Com um gesto brusco, a ferrugem expulsa a sua forma
do molde da tortura.
E por cima de tudo, por cima das lágrimas da vergonha,
a estrela quase se decidiu a confessar
porque entendemos o que é simples, apenas quando o coração estala
e nesse instante somos nós mesmos, sem nada, sozinhos e sem destino. 


Vladimir Holan -
versão para português de Rui Miguel Ribeiro
(relida  hoje).





[Vila Real, Novembro 2012]

sábado, 1 de dezembro de 2012

C de Começar o dia com um livro (de) novo (XVIII)



Ana Teresa Pereira, Num Lugar Solitário 
(reescrito e reeditado agora na Relógio D'Água).

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

S de Solidão (ou C de Comunidade) LIII

Deixa-o, a ele que ocupa
o seu reduto. Nunca te afastes
nunca te aproximes. Deixa-o
buscar a sua água. Que ele arde
por trás da pele e tu cheia de sol
ardes também dentro do sangue.
Aprende a liberdade das distâncias
a sabedoria de não tocar em nada.
Cada estrela em sua solidão.
Cada solidão como uma estrela.


Carlos Poças Falcão, 
Arte Nenhuma (Poesia 1987-2012), 2012

C de Começar o dia com um livro novo (XVII)

Sempre dançaram. Mataram. Ergueram
pedra sobre pedra o seu desejo, o seu espanto.
Tinham de mudar o curso desses rios
tinham de suar. O sonho em ressaca
varria-lhes a vida. Não paravam.
As palavras eram o mais árduo
ofício de inventar. Julgavam que sabiam
com palavras. Os céus lentamente evoluíam
havia sempre a noite e sempre o dia.
Nunca suspeitaram que morriam.


Carlos Poças Falcão, Arte Nenhuma (Poesia - 1987-2012),
Guimarães: Opera Omnia, 2012

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

W de Walk the line (II)

 
 
Lisboa - Nazaré - José Carlos,
Novembro 2012
 
 
A propósito de sítios perante os quais nos sentimos como perante os livros que farão parte de nós. E a propósito do vento a desafiar; do horizonte, que pode ser outra onda, outro país ou outro tempo; e do inverno habitado por uma raça com veias alimentadas a café e olhos em forma de vela.
Mas a propósito, sobretudo, dos amigos com quem existir é sempre escrever um diário a dois.
 

P de Poética - XXXIV d

[...] É no Castelo que está traçada a preocupação de Kafka pelo grande espaço da presença, presença como tirania, como vocação de vampiro que há no ser humano. A torre do castelo, que se divisa de longe, é o símbolo da presença, e desde longe ela irrita e faz com que a alma humana se encabreie como uma cavalo espavorido. O castelo é a sede duma imaensa administração, em que a hierarquia reina até ao infinito. Destina-se a caçar a originalidade humana, a fazê-la depender da sua ordem prodigiosa. O único meio para lhe escapar é o de fazer-se pequeno, como um insecto; pequeno e repugnante e fácil de remover da face da terra.
 
[...]
 
 
Agustina Bessa-Luís, Kafkiana (2012)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XXXI)



Lisboa - Marta, 
28/11/12

terça-feira, 27 de novembro de 2012

P de Poética - XXXIV b


Os inocentes são por assim dizer as musas dos criminosos. Mas há poucos inocentes, não conheço nenhum, e não se busque sobretudo entre as crianças: as crianças são monstruosas, eu sei, fui criança muito tempo, e o meu talento era monstruoso, o talento visitavelmente simples de respirar, mexer-se, propor uma palavra, uma frase, interpretar as coisas segundo a lei inspirada. A inocência é a tarefa de uma vida e essa vida deve ser então redonda, completa. Não sei de vidas completas.

De modo que os criminosos acabam por incitar-se uns aos outros, e tudo parece pequeno: ódio, vingança, crime; pode-se olhar face a face qualquer assassino: nenhuma estrela de primeira grandeza conduz essas biografias nocturnas; têm-se pela frente apenas as magias menores.

Alguns poetas procuram atravessar as portas, e se a palavra treme e faz tremer é um acto tremendo, uma passagem para a tenebrosa matéria de certas realidades, tenho ouvido pouco dessa palavra sísmica; estamos num tempo verbal manso. O arrepio que às vezes julgo percorrer uma voz, escuto melhor, não, não é daquela força com que se falam inocência e crime. Os poetas cumprimentam o dicionário, a gramática, a regra das formas, trazem luvas para trabalhar as massas sangrentas. E saem limpos como de cirurgias a raios laser. Não compreendo. Porque penso em todos aqueles que estão cobertos de sangue, não apenas as mãos bárbaras, mas os rostos erguidos, as bocas que devoram corações, os próprios corações postos fora; e a soberania deles, selvagem e nobre e inexorável e arrogante, funda-se no enigma do sangue e da luz, é um diálogo rítmico, terrestre, entre crime e inocência. O inferno não é o mal mas a fascinação que entre si exercem a candura e o saber. São figuras antigas, essas, monárquicas, loucas, trono e ceptro resplandecem. Por isso as venero. Os xamãs, os sacerdotes, os profetas. E os do verbo primitivo e furioso, sangue e sopro, a lua nas trevas, os animais solares, os fatais teoremas da dança e do abismo. Dante, Villon, Camões, Shakespeare, Blake, Nietzsche, Rimbaud, Sá-Carneiro.

Os outros, aqueles que vejo longe, que estão por aí, que os maus tempos tépidos prometem, passarinham pelos corredores, levantam à volta uma poalha iridiscente, nem se consegue sequer atribuir-lhes uma vida, são apócrifos.

E então ponho-me atento aos indícios: há um quarto aceso na cidade, a noite cerca esse quarto recôndito na sua luz, cada pequena coisa respira com destino à insónia invisível; presumo de imagens que se cruzam na memória, imagens insondáveis; presumo da crispada exaltação com que a insónia vigia o mundo que dorme. [...]


Herberto Helder
in Telhados de Vidro n.º4,
Lisboa: Averno, Maio de 2005

P de Poética (XXXIV)


[...] "Faz com que eu seja sempre um poeta obscuro." Mas na adolescência uma vontade crescia em mim: ser alguém com uma arma na mão, ter o amor dos outros. Inocência, pois as armas são perigosas, e o amor vira-se contra nós. Anos depois contemplava a bela frase, a humildade ardente dessa frase, e concluía que os caminhos do orgulho, que me haviam conduzido até ela, eram a minha solitária arma e a maneira de antecipar com vitoriosa alegria as várias mortes dos meus vários anos. Bem. Tenho algumas prateleiras com livros, meia dúzia de quadros e desenhos, uma dezena de discos. O quarto pode ficar subitamente cheio. [...]


Herberto Helder, Os Passos em Volta,
9ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim,  2006

M de Música para os meus olhos (XXXV)



A. Rosa, A Cantiga de António Nogueira,
Lisboa: ed. do autor, Dezembro de 1985
 

domingo, 25 de novembro de 2012

T de Tratado de Pedagogia (XLVII)


C de Começar o dia com um livro novo (XVI)

O AMOROSO QUOTIDIANO
 
 
 
A juventude é transparente,
é bom olhar através dessa transparência
(esta palavra já foi conspurcada pla
muralha repugnante dos políticos)
 
 
§
 
 
Excursões por livrarias, templos, jardins,
almoços, jejuns, faltas de dinheiro,
dores de dentes, jornais com anúncios luminosos,
amigos que morrem mal e ressuscitam bem impressos
 
 
§
 
 
A minha morte, o meu amor, o meu trabalho:
escutar-te todos os dias, à distância de muitos tiros,
calhandra toda lábios, em vôos coloridos
 
 
 
António Barahona, Maçãs de Espelho,
Lisboa: Língua Morta, 2012
 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

F de Fazer Fotografia (LXXI)


(Re)lido hoje, na inauguração da exposição “Fracções”,
de José Francisco Azevedo e Ruth Rosengarten
– Teatro da Politécnica

 

UMA ESPÉCIE DE PERDA

 
 
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
          cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
          gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
          E estendemos sempre a mão.
 

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
          Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, por uma praia e uma
          cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
Idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
 

( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

 
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
          mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
 

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

 

Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado,
trad. Judite Berkemeier e João Barrento,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1992

O de Outono (XIII)



"Meet me in the park", 21/11/12

terça-feira, 20 de novembro de 2012

F de Fazer Fotografia (LXX)

 
 
Frank Paulin, "I Love You", Chicago, 1951

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

F de "Ferrugem e osso"


 
[Nazaré, 18/11/12]
 

P de (The) Privacy of Rain (XXXVIII)

 



Do lado de dentro do Forte de S. Miguel Arcanjo,
17/11/12
 

sábado, 17 de novembro de 2012

T de "The days grow short..." (V)

 
 
Lisboa - Nazaré,
ontem.



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

S de "Semantics won't do" (VI)


T de Tratado de Pedagogia (XLVI)

O PERIGO DA SABEDORIA
 


Aprendemos a viver sem paixão.
A ser razoáveis. Passamos fome
entre os celeiros gigantes
que este mundo é. Armazenamos bastante
para quando formos velhos e fracos.
É a nossa força que nos despoja.
Como Keats obedecer ao médico
que lhe disse que a melhor coisa para a
tuberculose era comer apenas uma
fatia de pão e um pedaço
de peixe por dia. Keats matou-se
à fome porque ansiava
tão desesperadamente regalar-se com Fanny Brawne.
Emerson e a mulher decidiram fazer
amor com moderação para acumularem
a paixão dele. Ensinam-nos a ser
moderados. A viver inteligentemente.


Jack Gilbert
[18/02/1925 – 11/11/2012]

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

S de "Solo se pierde lo que no se ama.” *




* Começa assim um poema de Claudio Rodríguez.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O de Outono (XII)



NO OUTONO




Junto à cerca, os girassóis e seu brilho,
Doentes sentados ao sol, sem alento.
No campo, as mulheres cantam no trabalho,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.

Os pássaros contam lendas de encantar,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
Há um violino no pátio a gemer.
E já o vinho escuro vão recolhendo.

Todos parecem felizes, libertos,
E já o vinho escuro vão recolhendo.
Os jazigos dos mortos estão abertos,
Pintados pelo sol que vai entrando.


Georg Trakl
[Trad. João Barrento]




[Vila Real, 03/11/12]


domingo, 11 de novembro de 2012

S de Sense of snow (IX)


P de (Anti-)Poética XXXIII

MARFINS



     Em pelota. Rubicundos como velhos gansos. Já fastidiosos. Empolam a membrana onde esgalham versos. Empifarados. Que rilkas coisas estas crianças enfolam no amor pelos livros.
        Começam com um lago, um poente, uma flor. A sua mousseline pende das líricas videiras do silêncio.
        Sobem ao monte mais próximo onde descobrem um cágado. Deitam-no de costas e põem-se a chorar porque ele não anda.
        Começam com um Deus. Uma forma obscuríssima de vida. Depois, a meio caminho, enxotam animais e homens e cotejam essa agreste solidão com extractos de cultura.
        Os poetinhas desdenham um teclado sujo.
       Enfiam-se em casa, polindo os seus marfins. Despedem a misericódia dessa vida ingrata de reclusos e dão grandes passeios uterinos. Cansados dos avós, das palmadas no rabo, com o olho fito em bibliotecas, esgueiram-se pelos corredores onde os papões os esperam, afeitos à brincadeira. Então a mousseline estica como leite azedado de bambinos. 
        Os poetas armam zaragatas porque todos pretendem o melhor dos desaguisados.
       O povo, esse instrumento sofredor na mão dos literatos, ouve essas bulhas de bufarinheiros, cospe nas mãos e chama-lhes sacanas.
        "É perigoso este instrumento dado aos inocentes."
      Os poetinhas fogem pela rua dos fanqueiros, das fardas de criada, das popelines e das sarjas. Cegam com o pó que se levanta das peças de riscado e quando as burguesas, furiosas, colocam os maridos no caixote, os poetas saltitam, desdobram mousseline sobre os restos e fazem fogos-fátuos. 
      O povo, esse vazio onde as pessoas poisam mas não aquecem o lugar para os nomes, desfibra então a paciência, conta os tostões, inveja carpetes, lustres, pianos, magnetofones, e não inspira confiança.
    Andam aos bandos como um poema antigo. Aonde esta escolástica precoce que lhes antolha os membros? Deserdados de músculos, com utensílios ineficazes ao pescoço, os poetinhas marujam na versátil confusão dos versos. Vêem-se penosamente nas tardes baças, onde piam pássaros de modo lúgubre, nas noites rígidas e calafetadas. Quando o aquecimento ao rubro já não dá mais margem ao desespero, os poetinhas sobem às cadeiras, retiram as molduras e põem-se ao espelho como prostitutas.
     Besuntam-se de tédio, colocam no rosto esses cremes nefastos que retiram dos armários culturais, desse arsenal de espólios que as famílias do espírito entesouraram para os descendentes. 
     Conhecem eles a guerra? O instante que se joga no gatilho? A cobiça dos bens? O mar de soluços que sobe pelas pernas podres dos que vão morrendo?
     Arremedam o Instante, a Cobiça, o Soluço.
     Fogem quando o pavor é real e a máquina uma força indomável que não cede a biografias nem a deuses.
   E cantam.
   Cantamos. 



Armando Silva Carvalho, O Alicate, 
Lisboa: Editorial Presença, 1972

sábado, 10 de novembro de 2012

A de Amor (XX)

"Lembro-me duma frase doutro escritor de língua alemã, Hermann Broch, que me impressiona ainda com a mesma intensidade, muitos anos depois de a ter lido. 'O amor é uma estranheza' - diz ele. Tudo o que nos desperta e até fere é um toque de alvorada do amor, ou é a descoberta da sua procura. Porque o amor nada mais é do que a procura incessante, a inspiração de toda a ausência de perigo para o qual o homem se acha destinado. [...] Kafka preocupa-se em criar obstáculos aos seus concidadãos de Praga e do mundo inteiro; obstina-se em ser desagradável e criar raízes assim no coração dos outros. A sua forma de amor é a hostilidade, a resistência à fatalidade do acordo, o desprezo da bonomia cuja superficialidade o magoa mais do que a agressão."


Agustina Bessa-Luís, Kafkiana
Lisboa: Guimarães, 2012


*


"Pois aquele que ama está num embaraço, não sabe o que faz, anda à procura. Não é esta a maneira menos decisiva de justificar a natureza incompleta da filosofia - termo cujo significado nunca se fixou definitivamente -, tarefa intrigante, que leva de cada vez a cabo uma inquiração de identidade, desde sempre grande motivo de escândalo. Com efeito, só se pode amar aquilo que não se possui. A imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor."


Maria Filomena Molder, A Imperfeição da Filosofia,
Lisboa: Relógio D'Água, 2003

A de Aniversário - XII c

"J'ai tendu des cordes de clocher à clocher; des guirlandes de fenêtre à fenêtre; des chaînes d'or d'étoile à étoile, et je danse."

Arthur Rimbaud
[20/10/1854 - 10/11/1891]




[São Miguel, Agosto 2012]

A de Aniversário - XII b


O fumo, os  cafés, o tipo que te traz de madrugada,
aquele colega que fugiu, este que vem acordar-te,
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud...

Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, não custa nada
porque é tão alto o preço da vida?




Violeta C. Rangel

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A de Aniversário (XII)

[...]
Por vezes fixo uma data, talvez até ao fim da minha vida. E quando chegar um dia antes desse dia, posso lembrar-me sempre de um facto que se lhe prende. Não importa que seja um aniversário. Pode não passar de um gesto, de um rosto que para sempre ficou perdido na distância não só do tempo como de uma rua, de uma sala de museu, de uma loja. Durou segundos, mas traz o traço, a sombra, a luminosidade capaz de se prender pelo que houver de longo na minha vida. Irrompe no exacto dia do aniversário da sua aparição, ou andará próximo desse instante. Nem sempre é um rosto, um corpo, ou um melro morto à beira de um passeio. Um objecto pode ser o senhor desse domínio festivo. Mesmo a morte de um melro ou de alguém amado transporta consigo um sentido de festa, de coisa que se comemora no mais secreto. [...]


João Miguel Fernandes Jorge,  O Próximo Outono, 
Lisboa: Relógio D'Água, 2012

P de Poesia (XI)

 
 
Cirque d'insectes. "Paon-de-nuit" volant autour d'une corde raide.
Berlin (Allemagne), 1934.
© Jacques Boyer / Roger-Viollet