o tempo passa como cinza branda sobre os cabelos, aprisionando-os numa velhice futura - sem fim.
em meu ossos a terra iniciou o seu trabalho, lento, devorador. o ar corrompe-se na dor dos fogos-fátuos.
evapora-se o coração do amigo morto.
o início da vida esteve, talvez, na harmonia de uma gota de água que fecunda um grão de areia. jamais saberemos como nasceu o desejo do poema.
por isso, quando começares a pensar em mim, ou a desejar-me ainda, apenas encontrarás as arestas escuras dos objectos que me pertenceram - enquanto toda a fundura da terra ter-me-á absorvido.
o meu corpo é agora húmus e ausência. sombra a perturbar-te a vigília do sono - bolor que te cresce, luminescente, entre os dedos. e a minha língua, silenciosa, como a serpente, deslizará noite adiante em teu peito, à procura de alimento e de sossego.
mas não são os mortos que se alimentam com os vivos. são os vivos que se escondem na memória o peso dos mortos.
que nome te resta se eu já aí não estou para te chamar?
e os meus olhos cegaram com a terra que os bebeu.
[...]
o dia vem lentamente na incandescência de um fio de poeira suspensa. atravessa o quarto vazio, acende-te o rosto.
abro um pouco a boca e deixo cair a moeda de ouro. nos meus olhos descobrirás como é grande a tristeza do mundo.
lá fora é outra vez verão.
Al Berto, Canto do amigo morto,
com desenhos de José Pedro Croft,
Lisboa: Europália, 1991