quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." - XI c

[...] Para a multidão, uma vedeta é uma pessoa que caminha sobre as águas: triunfa, por procuração, dessa sensação de "mergulho" prenhe de angústia que é a sorte do homem moderno arpoado pelo anonimato voraz da multidão das grandes cidades. Ao ver os olhares prenderem-se à pantalha como a uma bóia de salvação, compreende-se perfeitamente que o seu contacto, mesmo imaginário, imunisa contra a morte, triunfa, ainda que por um só instante, do sentimento de não-reconhecimento que é o lote da vida das moléculas humanas em vão rebeladas contra a condição que lhes foi criada de entrar sem apelo "em composição". O difícil é saber-se a partir de quando uma fixação a princípio tão imprevista começou a ver-se mais ou menos sabiamente solicitada: porque é evidente não ter a oferta ficado muito tempo em atraso sobre a solicitação. O acidental, o imprevisto, como no cinema, ritualizou-se prontamente, e no negócio nem sempre é esquecido o juro do culto. Tudo se passa hoje como se produzisse uma "corrente de ar" que se tornou para o artista uma perigosa causa de desquilíbrio: é evidente que a partir dum certo grau de sucesso inicial, o escritor moderno se sente apesar de tudo apanhado pela "dimensão do grande homem". O nascimento do grande escritor corresponde em 1949 (pelo que diz respeito à grande massa do público) não a uma condecoração por serviços prestados (frequentemente a título póstumo) mas antes à necessidade difusa de prover sem demora a faltas e vazios entre os cabeças de cartaz (e isto é especialmente evidente nos meios fechados, como o da Boa Imprensa de extrema-esquerda, onde se produzem com frequência, por uma ou outra razão, mutações ou "separações"). A verdade é que o escritor dispõe hoje de mil maneiras de se manifestar de alcance muito mais eficaz do que que os seus livros. A sua situação ganha muito em rapidez ao servir-se de outras vias além da lenta penetração duma obra escrita, da lenta digestão dela por um público que a fome nem sempre devora. [...]


Julien Gracq
in A Literatura no Estômago, pp. 45 e 46

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