AS PAREDES DO SENTIDO TÊM DE FACTO BOLOR
Está tudo bem. O céu do Ocidente
decai, os índices da Bolsa mantêm-se
estáveis, catastroficamente presentes
na vida de cada um de nós
- aqueles que adiam o amor e
que sempre gostaram tanto
de mentiras certas e portáteis.
O céu do Ocidente, em Lisboa, é
um fundo negro de asfixia e paixão
onde apenas estrelas moribundas
nos lembram que existe um olhar míope
- enquanto o milénio finda
com as suas máquinas de triturar canções,
os tão pequenos ardis que promovem
a derrota. O sangue parado, no chão.
E os índices da Bolsa como raparigas
novas nos infatigáveis jornais
por ler, ao lado dos cigarros, ajudam-nos
a esquecer os cancros que uma moral suspeita
soletra. Será isto a vida? Também.
O telemóvel de Prometeu dá-nos
indicações precisas sobre a ignorância,
observa o fuso horário do desespero.
Modos de pavor, em suma,
que em qualquer tempo seriam
esta mão ocidental e fria
que escreve para ninguém ouvir
o nada que tem (terá?)
para dizer na noite corrompida.
As coisas são assim, paciência,
e aglutinam-se, em dígitos complicados,
o novo Peugeot pensante,
terapias por cumprir de Burton:
a melancolia nos ossos, as fezes da amada
sob a cabeça amante,
enquanto um airbag trocista
nos obriga a uma vida
que se gastou tão gasta
e que rescende nula
nos mais variados aspectos.
Pois é.
Manuel de Freitas
in A Última Porta, selecção e posfácio de José Miguel Silva,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2010