A torrente da multidão queria arrastar-me. As luzes verdes à esquina das ruas ordenavam-me que atravessasse. O polícia sorria a convidar-me para que caminhasse por entre os pregos de cabeça prateada. Até mesmo as folhas de Outono obedeciam à enxurrada. Eu, porém, apartei-me dela, como um objecto extraviado. Desviei-me e parei ao cimo das escadas que descem para os Cais. Lá em baixo deslizava o rio. Um rio diferente da torrente de que eu me separara formada por peças dissonantes que se chocavam com aspereza, movidas pela avidez e pelo desejo.
Corri pelas escadas abaixo em direcção ao molhe - os ruídos da cidade recuavam à medida que eu descia, as folhas murchas refugiavam-se aos cantos dos degraus sob o vento das minhas saias. Ao fundo das escadas deitavam-se os marinheiros naufragados da torrente das ruas, os vagabundos que se tinham afastado da multidão, que se haviam recusado a obedecer. Tal como eu, a uma dada altura do trajecto, separaram-se, e ei-los ali estendidos, náufragos, no sopé das árvores, a dormirem ou a beberem. Tinham abandonado o tempo, as riquezas, o trabalho, a escravidão. Caminhavam e dormiam contra o ritmo do mundo. [...]
Anaïs Nin, "A Casa Fluvial"
in Debaixo de uma redoma, trad. de Maria Ondina Braga,
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