segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

S de Solidão (ou C de Comunidade) - XXIII b


332. jogaste sempre com as cartas viradas para cima e perdeste lutaste sempre de peito nu e perdeste nunca duvidaste da palavra escutada e perdeste agora já é tarde para voltar atrás e até para fazer um exame de consciência não pactuaste com os anjos nem com os demónios e perdeste não te rias de ti deixa que sejam os outros a rir de ti com justa causa agora tens de cumprir a penitência que corresponde a quem teima em construir mundos cimentados no ar de criança sonhavas com teias de aranha e redes que te apanhavam depois dedicaste-te a tecer teias de aranha e redes e agora sentes-te a agonizar porque caíste na tua própria armadilha já tiveste tudo e por isso podes deitar fogo a tudo isto ofereço a fulano isso a sicrano aquilo a beltrano dirás eu nada quero porque também não preciso de nada dirás para morrer basta um metro quadrado de terra alheia e um coração que queira parar a tempo também se pode caminhar vivo e despido logo te ladrarão os cães logo te apedrejarão os vizinhos não será necessário esforçares-te para provocar as suas iras porque a raiva contra o derrotado está sempre à flor da pele, não, não queres morrer mas vais morrer tu notas que vais morrer escolhe um cenário neutro uma decoração confusa nunca nada deve ficar demasiado diáfano são agora seis menos vinte da manhã sobre o horizonte amanhece um dia que se prevê belo estás triste muito triste mas sente que te invade uma paz infinita faz um esforço para não dispores da tua vida deixa que seja a morte a organizar a sua própria representação os amigos ficarão surpreendidos com a notícia de que o sangue das tuas veias não se derramou sobre as lajes do teu estúdio morreu de morte natural dirão uns aos outros mas nem uns nem outros acreditarão no que ouvem é mais engraçado que a coisa se passe desta simples maneira no estômago não tinha veneno nos pulmões não tinha água no corpo não tinha uma única bala nem um só golpe nem um só corte sabe-se que morreu de fastio é pena que as janelas do outro mundo estejam fechadas de pedra e cal de qualquer modo seria melhor imaginá-las abertas e povoadas de anjos curiosos de demónios curiosos de fantasmas desorientados e curiosos também é pena que não tenhas tido mais fé é um subterfúgio consolador mas na tua derrota não te resta sequer isso amas todos os que te rodeiam e apenas sentes desprezo por ti mesmo também invejas todos os que te rodeiam e sentes uma infinita compaixão por ti mesmo, não, deves evitar essa atitude ninguém deve desprezar ninguém nem ter compaixão de ninguém quem perde paga e tu perdeste e pagas a coisa não tem grande mistério nem deves dar mais voltas à cabeça é provável que todos os finais sejam assim falta-te experiência em finais próprios [...]



Camilo José Cela, Oficio de Tinieblas 5
Barcelona: Plaza & Janés Editores, 1989

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