domingo, 28 de setembro de 2014

C de "Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..."


PAUSA


Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.


Antonia Pozzi
in Morte de uma estação, sel. e trad. de Inês Dias,
Lisboa: Averno, 2012




[Ontem,  uma pausa em Santa Cruz, na melhor das companhias]

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O de "O mar, o mar" (VI)


GUERRA & PAZ


Pedidos sacrifícios, as imagens
Foram trazidas na maré, enxutas.
Treme a escada torpe, e o cão ladra -
São os antepassados, fixos,
Na água das janelas.
Que podemos fazer, o fumo
Entra nas casas é preciso
Uma porta que nos leve ao mar.


 Gil de Carvalho, De Fevereiro a Fevereiro,
Lisboa: Centelha, 1987




[Santarém / Fevereiro 014]

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

T de Tratado de Pedagogia - LXIII c


ESTRANGULEI O MEU IRMÃO


Estrangulei
O meu irmão
Porque ele não gostava de dormir
Com a janela aberta

Minha irmã
Disse ele antes de morrer
Passei noites inteiras
A ver-te dormir
Debruçado sobre o teu reflexo no vidro.


RENÉ CHAR
[Trad. Inês Dias]

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

T de Tratado de Pedagogia (XXXII)


Termina assim um poema de E. E. Cummings:

I'd rather learn from one bird how to sing
than teach ten thousand stars above how not to dance.

domingo, 21 de setembro de 2014

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

L de Levantar a cabeça (XII)


"[…] Por entre a frincha larga das portadas havia sempre um resto de luz a invadir a penumbra e a expor as arestas das coisas. […]”


  ALEXANDRE SARRAZOLA
in Neófitos, com fotografias de Mafalda Capela,
Lisboa: Averno, 2014




[Santarém, 06/10/12]


"Havia muito a ver também. Certos instantes de ver valiam como 'flores sobre o túmulo': o que se via passava a existir. No entanto Joana não esperava a visão num milagre, nem anunciada pelo anjo Gabriel. Surpreendia-a mesmo no que já enxergara, mas subitamente vendo pela primeira vez, subitamente compreendendo que aquilo vivia sempre. Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a balançar para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde... E de repente, sim, ali estava a coisa verdadeira. Um retrato antigo de alguém que não se conhece e nunca se reconhecerá porque o retrato é antigo ou porque o retrato tornou-se pó - esta sem-intenção modesta provocava nela um momento quieto e bom. Também um mastro sem bandeira, erecto e mudo, fincado num dia de verão - rosto e corpo cegos. Para se ter uma visão, a coisa não precisava de ser triste ou alegre ou se manifestar. Bastava existir, de preferência parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por Deus, a marca da existência... Mas isso não deveria ser buscado uma vez tudo o que existia forçosamente existia... É que a visão consistia em surpreender o símbolo das coisas nas próprias coisas."


CLARICE LISPECTOR
in Perto do coração selvagem, Lisboa: Livros do Brasil, s/d

domingo, 14 de setembro de 2014

D de Domingologia




[Lisboa / 2013]

R de Regresso ao Trabalho (LVI)




It's the end of the world as we know it
(and I feel fine)


[ID / Lisboa 013]

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

T de "The days grow short" (X)




[...]

Assim que a estação morria,
o mar vinha buscá-la
entre salvas de limos
e restos de outros naufrágios.
Os banheiros desmontavam a praia,
arriando bandeiras friorentas
enquanto eu, rei sem reino
para trocar pelo me cavalo
regressava então ao exílio.

[...]


Inês Dias, "Tempos Vários"
in Da Capo, Lisboa: Averno, 2014





sábado, 6 de setembro de 2014

Q de "Que a alegria em mim permaneça" (VII)


Ontem.
E sempre.



MARC CHAGALL

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

H de "He loved beauty that looked kind of destroyed" (IX)


LA BELLE ET LA BÊTE


Em vez da luva,
o gesto, do cavalo
a fuga, da chave
o ouro, do meu espelho
o outro; em vez de
uma rosa, a rosa.

Em vez das ruínas,
o arrepio de um sarcófago
sob a seara, ou
o calor da pegada
em que a mão agora poisa,
primeira pele de uma cobra
a sujar a memória.
Essa beleza de trazer 
a vida na ponta dos dedos
e um exército inteiro
de dois gatos para guardar
fronteira nenhuma.


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014




[ID, 04/05/014]