quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

P de (Po)ética (LIV)


EM VEZ DE PREFÁCIO

Nos terríveis anos de Iezhov passei dezassete meses nas filas de prisão em Leninegrado. Certa vez alguém identificou-me. Então uma mulher de olhos azuis que estava atrás de mim, que de certeza nunca ouvira o meu nome, saiu desse torpor próprio de todos nós naquela altura e perguntou-me ao ouvido (aí todos falavam num murmúrio):
- É capaz de descrever isto?
E eu respondi:
- Sou.
Então algo parecido com um sorriso perpassou por aquilo que outrora fora o seu rosto.


1 de Abril de 1957
Leninegrado



- ANNA AKHMATOVA


*


Mas a vida é bastante difícil, e sobretudo quando não se consegue achar as palavras.


- ETTY HILLESUM
in Diário, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

C de Começar o dia com um livro novo (XXXII)


Virás sempre
fazer com que acredite
que o tempo
nesta procura
não acaba.

Gesto exigente
o teu amor alado.

E nenhum vento que nos perturbe.


Marta Chaves, Perda de Inventário,
com capa de Inês Dias e separata de Maria Manuel Viana, 
Lisboa: Alambique, 27 de Janeiro de 2015




[Inês Dias, Sintra, 05/013]

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

B de Biorritmo - XX b


"[...]
Ya sé, no me digás, tenés razón,
la vida es una herida absurda
[...]"



sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

N de "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos" - b*


"[...]
se tu soubesses vinhas comigo prò mar.
Vinhas comigo prò mar
embora as nuvens do céu
e os ventos que vêm do este e do oeste, do sul e do norte
digam ao mundo que vai haver o temporal maior que todos!"


- MANUEL DA FONSECA




[ID, Lisboa, 11/02/011]

*

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

P de "Portugal não é um país pequeno"


Tempos idos nada excluem
e a pouca certeza cansa. Cansa
a pobreza das alíneas à volta da idade,
e a vista não alcança.
Cansam as esferas e o céu, o apagão
nas pedras, a cinza num delírio, a terra
toda. Uma mina pegada cansa
a sombra debaixo do alpendre. Cansa
o trabalho, o usufruto, o verdadeiro cansaço. Cansa
quem cante o degelo nos desertos, o arvoredo
esvaído ao que aqui venha esporrar-se. Cansa
a caveira no lixo, a ilusão, o fim perante. Cansa
a distância no que é estar perto. Cansa
a erva da morte. Maré da sorte,
o nada sem vergonha aí ao debrum.
Cansa o verme na figueira. Cansa
a carne de palhaço, cansa
a tanta sede sem assunto.
O voo sem para onde ir
é a falta de ar.


Rui Baião, Insane,
Lisboa: Averno, 2014




[ID, Viana do Castelo, 17/08/2010]

sábado, 17 de janeiro de 2015

P de Poética - XXXIV c


PAISAGEM EM 78 R.P.M.


                                A criança abaixa as sobrancelhas
e o sorvete
                                                                sobre a cabeça de lata de Camões
esquecida atentamente nos estofos normais de um Packard
                                Eu sou naquela tarde um ritmo
                sabendo de antemão um coração ferido
Sem ser necessariamente elogiado pelos plátanos
                                                                  ou saltar das fronteiras
                de São Paulo para abraçar
                     as redondilhas da vida pastoral
Os filantropos entraram com o pé direito
                          na Casa da Aventura Lansquené
                              e os pardais urravam nos ninhos
                                   feitos com cabelos de Trotsi

                          as latas de compota riam com as línguas
                                 de fora
                          o Sol se punha nos meus planos
    a 
          nossa 
amante ruiva bota no pescoço um
lenço verde de Tolstoi
                          No alto
                          do Viaduto o louco colava pedacinhos de céu
                                                                                  na camisa de força
                          destruindo o horizonte a marteladas 
                                  a Morte
                                           é
                                                    um
                              REFRÃO NO CRÂNIO SEM JANELAS


Roberto Piva, Paranoia
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009




[Lisboa, Setembro 2012]

domingo, 11 de janeiro de 2015

I de "I want to ride my bike" (V)


A pêra
O pote de compota
O cair da tarde
O rio da paisagem
O verde da garrafa
Pousado sobre a mesa
Onde tu e eu estamos
A olhar eternos
Os olhos de quem nos olha
Aqui neste teatro






Venho do mar
Venho dos montes
Sê amiga do meu repouso

Se apeteço ser rei
Ter um barco e um cão
E dos meus amigos ser amigo

Sê benigna
Se me amas



António Dacosta, A Cal dos Muros,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1994

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

P de "Pelos caminhos da manhã" (V)


Ir andando por aí sem ti nos nomes, e daí vir, contigo
na ideia. Ser tocado pelo esquecimento de uma lezíria.
Ser a própria trívia. Retornar deserdado,
sem eira à beira de mim.


Rui Baião, Insane,
Lisboa: Averno, 2014






[ID, 'Intercidades', 02/014]

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

B de Bom Ano Novo (VIII)


I'M GOING IN


ao piano, um corpo pronto
a nascer tudo de novo

a promessa dedilhada do regresso
àquele ponto de encontro
circular, em que já não recordamos
quem somos, nem por quem

chorámos. aquecemos as mãos
batidas pelo vento, a pele funde-se
aos poucos com as asas, o sangue
com as florestas e os rios.

this is how it starts,
olhamos a manhã ao longe
à espera que nos desenhem um rosto.


Renata Correia Botelho, small song, 2.ª ed., 
com capa e desenhos de Daniela Gomes,
Lisboa: Alambique, 1 de Janeiro de 2015