terça-feira, 19 de maio de 2015

C de Começar o dia com um livro novo (XXXV)


NIGHTHAWKS AT THE DINER


Não sei se existe isto de que falo,
mas deixa‑me reparar um pouco
no teu modo ternamente animal
de confundir palavras e sentimentos,
num quase‑silêncio desabrigado e informe.

Um corpo serve para muito pouco,
desde os caprichos da libido
às infecções urinárias. Coisas às vezes
parecidas que disfarçamos com vinho
e com uns restos de astúcia. Não me ouças,
se não quiseres. Ainda não se perdeu o lume
das mãos redondas com que te despes
a um canto, singularmente igual
ao que de ti recordo num outro Inverno
distante. Deixemo‑nos ficar esta noite,
enquanto Tom Waits nos volta a falar
de um camião chamado Phantom 309
ou de outra coisa qualquer, singularmente
igual — um pouco mais triste, talvez.
Não é isso que importa. Também cada um de nós
terá um dia de se despistar ao encontro
de alguma certeza irrisória e no entanto mortal.

Que o vinho não acabe, entretanto, e
que as canções não pereçam nesta noite
cativa do lume mas friamente corrupta.
Só nos teus lábios posso encontrar os teus lábios.
Eis uma parva verdade a que por vezes regresso,
mais importante decerto do que a sagesse de Verlaine
ou do que aquele velho bar onde dantes, pelo
fim da tarde, cumpríamos o amor. Deixa lá, no exacto
sítio da morte, essa teimosa paixão que não morre
nem finge viver. Tudo isto é inútil, embora
o empadão estivesse bom e eu já não saiba sequer
quantos anos passaram desde que um ao outro
oferecemos o engano e a miséria de um rosto.
O vinho depressa acabou, e é entre os teus seios
que agora adormeço, como se houvesse um lugar.

Daqui a algumas horas esperar‑nos‑á,
crudelíssimo, o terror tépido de mais um domingo
absolutamente dispensável. Só então saberemos
o que desta noite há‑de a memória roubar.
Talvez um perfume a doer‑lhe feliz, ou as roucas
onomatopeias de uma certeza insegura
— do lado mais esquivo da morte.

Mas bastam‑me para já as mãos redondas
gentis que fazem chover o teu nome
sobre as ruas desertas do meu coração.


Manuel de Freitas
in Sunny Bar, com selecção de Rui Pires Cabral,
posfácio de Silvina Rodrigues Lopes, capa de Luís Henriques 
e arranjo gráfico de Pedro Santos, Lisboa: Alambique, 2015

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