segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

M de Merry Little Christmas


[...]

A luz que ali existe é uma luz espiritual, que surge em raios quase imperceptíveis a partir do recém-nascido na manjedoura, à cabeça do qual aparecem uma série de anjinhos papudos com penteados pré-rafaelitas. Na base da manjedoura, o manto azul da Virgem torna-se no mesmo negro carregado da noite; o céu é da mesma cor do que se vê através da porta do estábulo. Numa colina distante, as sombras quase imperceptíveis dos pastores cuidam de um rebanho de ovelhas cinza metalizado. Acima destes, o anjo Gabriel paira num branco espectral e angélico; enquanto mais abaixo, o boi e o jumento, praticamente invisíveis nas sombras, adoram o menino. Geertgen transmite a escuridão da noite com uma mestria que eu nunca vi em nenhuma outra pintura - isto não é possível numa foto, e talvez seja apenas possível em filme, embora custasse uma fortuna em luzes para atingir o efeito. A noite em Hampstead é desta cor. As árvores tornam-se cerradas. A lua brilha clara como o anjo. As ervas são de um castanho espectral. Os ramos prateados como branco de giz, e cada forma dissolve-se nas sombras.




Derek Jarman, Chroma,
trad. de João Concha e Ricardo Marques, (não) edições, 2015

domingo, 17 de dezembro de 2017

C de Começar o dia com um livro novo (LI)


[...]

É noite
espero-te
fumo
como a chaminé dum hospital

Escrevo
palavras que nadam num aquário
Tenho peças de relógio perdidas nas veias
Sou um colar violento ao teu pescoço de planta

Fumo
e teço um manto de algas
para te cobrir ao menor sinal de chuva

O sangue flui
com os destroços e os ossos das horas

O cigarro pega fogo à noite


in António Barahona, A Voz ao Espelho (Quinto Tômo da Suma Poética),
Lisboa, Averno, 26 de Novembro de 2017

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

E de Espera (LIX) - 1.º Domingo de Advento


"O vermelho é um instante no tempo. O azul é constante. O vermelho gasta-se depressa. Uma explosão de intensidade. Vibra em si mesmo. Desaparece como faíscas de lume dentro da escuridão uniforme. Para nos aquecermos no longo e escuro Inverno quando o vermelho se ausenta. Recebemos de bom grado o pisco-de-peito-ruivo, e as bagas vermelhas que permitem a vida. Vestido no vermelho Coca-Cola do Pai Natal, aquele que traz presentes. Sentamo-nos à volta da mesa e cantamos "Rudolph the Red Nosed Reindeer" e "The Holly and the Ivy". The holly hears a berry as bright as any blood. Os nossos rostos de Inverno são tingidos de um alegre vermelho. Preservamos o vermelho como uma chama. A vida é vermelha. O vermelho é para os vivos [...]."


Derek Jarman, Chroma,
trad. de João Concha e Ricardo Marques,
(não) edições, 2015




B de Biorritmo (CV)





Life is brief. Fall in love, maidens,
Before the crimson bloom fades from your lips,
Before the tides of passion cool within you,
For those of you who know no tomorrow.

Life is brief. Fall in love, maidens,
Before his hands take up his boat,
Before the flush of his cheeks fades,
For those of you who will never return here.

Life is brief. Fall in love, maidens,
Before the boat drifts away on the waves,
Before the hand resting on your shoulder becomes frail,
For those who will never be seen here again.

Life is brief. Fall in love, maidens,
Before the raven tresses begin to fade,
Before the flame in your hearts flicker and die,
For those to whom today will never return.


Viver (Ikiru - Japão, 1952). Realizador: Akira Kurosawa

terça-feira, 21 de novembro de 2017

L de Liberdade condicional





O HOMEM DA PERNA DE PAU


Havia um homem que vivia muito perto de nós
Tinha uma perna de pau e um pintassilgo numa gaiola verde
Chamava-se Farkey Anderson
E tinha estado numa guerra para arranjar aquela perna.
Sentíamos muita pena dele
Pois tinha um sorriso tão bonito
E era um homem tão grande a viver numa casa mesmo pequenina
Quando ele andava na rua a sua perna não fazia grande diferença
Mas quando andava na sua casa pequenina
Fazia um barulho horrível.
O Irmãozinho dizia que o pintassilgo dele cantava mais alto do que todos os outros pássaros
Para o homem não ter de ouvir a sua pobre perna
E ficar demasiado triste com isso.


KATHERINE MANSFIELD
[Trad. Inês Dias
- aqui]





[Inês Dias, Lisboa-Guimarães | 011-013]

Regresso do trabalho (II)




Nuno Moura, Clube dos Haxixins
Lisboa, Douda Correria, 2016

domingo, 19 de novembro de 2017

A de "aparece de vez em quando uma inês que gostaria de fotografar coincidências" (VI)


"[...] A vida. Que é uma palavra só nossa para dizer poesia. [...]"*





* In Cão Celeste n.º 1, Lisboa, Abril de 2012

terça-feira, 14 de novembro de 2017

T de Tratado de Pedagogia (XL)


"Tu as tout à apprendre, tout ce qui ne s'apprend pas: la solitude, l'indifférence, la patience, le silence."


- Georges Perec, Un homme qui dort, 1967


sábado, 11 de novembro de 2017

Y de "You can never hold back spring"


46.

Um grande poeta, meu amigo, disse-me que as buganvílias não têm cheiro. Mas nós sabemos que tudo tem cheiro, até o vidro, os navios de espelhos e as flores-de-lis tatuadas no coração das donzelas. As buganvílias, quando fenecem e se apagam lentamente, libertam, no exacto momento em que a sua luz se extingue, um suave odor a rapariga adormecida na madrugada. Os poetas sabem o mundo todo, mas nem sempre têm razão.


Rui Chafes, Entre o céu e a terra,
Lisboa, Documenta, 2012





[Lisboa, 26/10/12]

terça-feira, 24 de outubro de 2017

L de "Les yeux du chat"




[Franz Pforr, "Sulamita e Maria", 1811 - detalhe]





[Friedrich Overbeck, "Retrato do pintor Franz Pforr", c. 1810]

terça-feira, 17 de outubro de 2017

S de Sense of Snow (VIII)


A CULPA COLECTIVA



A neve é um esforço, nunca dorme, 
nunca pode dormir. A última neve
talvez não chegue a cair, talvez não possa
voltar a unir a água na brancura
passageira das suas mãos. Sim, amanhã
talvez não chegue a nevar, cairá a chuva,
e ao olhar de Deus seremos náufragos
de morte semanal e para sempre.


Luis Rosales, Rimas y La casa encendida, 1979
[Trad. ID]

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O de "Onde se lê 'gato'..." (XIII)


[Para a Maria e o Ricardo]



OS GATOS


Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos


- MANUEL ANTÓNIO PINA




[Capa de Maria João Worm
para Cão Celeste n.º 11, Lisboa, Agosto de 2017]

sábado, 30 de setembro de 2017

O de Outono (VIII)


MARA

A chuva
não veio, os tinteiros
estão vazios,
os sonhos acomodam-se
em latas de cerveja.
Porque o Setembro,
porque esta folha de papel
fica branca, tu não dás
com a minha porta, mas
o meu cabelo cresceu,
as divas sorriem-nos
dos cartazes,
com as palavras
que eu não encontrei
um outro mata
a sua sede.
Jürg Beeler (trad. de João Barrento)
in Bumerangue 3, Guimarães, 1997

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

N de "No fundo, é isto" (III)


Lisboa, 18-19 de Dezembro de 1977


Minhas coisas tão docemente amadas, meu Oceano que és para mim o que nunca foste nem serás para ninguém, minhas manhãs de tímidas madrugadas, minhas águas correntes de regatos imensos que não estão no corpo mas na alma e desaguam sempre noutro rio até chegarem àquele a quem os antigos chamavam Letes. Minhas queridas nuvens:

É uma grande ingratidão amar-vos tanto e ainda vos não ter escrito. Mas sei que me hão-de perdoar. Se só agora vos falo é porque talvez esteja agora mais longe de vós e mais sinta a vossa falta. Talvez por ter sido sempre impenetrável na minha completa solidão e me convencer finalmente que vou morrer tão só como nasci e cresci. Só que então eu não dava por isso. Damos sempre pelas coisas quando elas já passaram… Não sei porque escrevi «Damos»… «Dou» era o que eu devia ter escrito. Esqueço-me sempre de que só posso falar — e aproximadamente — de mim. Com o resto nem sequer me devia preocupar. O milagre de estar vivo e de vos conhecer é tão grande que me devia bastar para encher os dias todos, mesmo que eles fossem muitos. Mas… esquecemo-nos tão depressa destas coisas tão simples! Lá estou eu a falar outra vez no plural! Nisto como em tantas outras coisas não vou ter emenda até ao fim dos meus dias.

Quando vocês me conheceram eu ainda não dava sequer por vós, meio assustado ainda com a vida… Agora já muito pouco me assusta, ia a dizer quase nada. Por isso abro mais vezes os olhos para vós e chego a pensar que me escutam.
Foi tudo tão rápido embora eu goste de velocidades!!! E no meio de duas pessoas que se encontram como no meio de alguém que se encontra a si próprio há sempre um espaço qualquer que nem por poder ser muito pequeno deixa por isso de ser muito importante. Tão importante que se não existisse não havia o Mundo… Tenho pena de vos deixar assim… Mas não é o hesitar que faz o êxito. E muito menos o ser de Tão Longe.

Tenho-vos sempre na lembrança.

Mário


Mário Botas
in Aventuras de um  crâneo e outros textos,
org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas,
Lisboa: Averno 2013




[ID, Nazaré | 013]

terça-feira, 19 de setembro de 2017

M de Moeda única (ou T de Tempo)




Manuel de Freitas, Jukebox 2,
com capa de Inês Dias, Teatro de Vila Real, 2008





Inês Dias, Café Estádio, 2013

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

T de Tratado de Pedagogia (LXVIII)


Depressa antes que se veja
traz a água quente, a água
oxigenada, o mercúrio, a tintura,
a lixívia, a borracha.
Cortei, desenhei do outro lado
um fruto, forma de uma linha
única, queria pôr do outro lado
outro coração. Mas não há
outro lado nem outro coração,
depressa não quero que vejam
não quero.


Helder Moura Pereira, Mercúrio,
Lisboa, frenesi, 1987

F de Falar para as paredes (IX)


TEMA


Foram quintais de dois invernos,
um desenho na janela para explicar
qualquer coisa sobre nós, qualquer coisa
terrivelmente alheia às palavras. 

Pequenos alicerces do próprio tempo,
quem diria que os podíamos
apagar? Iam do princípio ao fim
dos meses, era onde se agarrava 
o ramo branco da casa.


Rui Pires Cabral, Praças e Quintais,
Lisboa: Averno, 2003




[ID, S. Miguel, 17/08/11]



NOMEAR-TE


Não o poema da tua ausência,
Apenas um desenho, uma fresta num muro,
Algo no vento, um sabor amargo


Alejandra Pizarnik, 30 Poemas, 
trad. Inês Dias e Manuel de Freitas, 
Lisboa: Língua Morta, 5 de Setembro de 2011

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A de A poesia é o menos (XI)




Miguel Martins, O Caçador Esquimó,
Lisboa, Fahrenheit 451, 2017

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

U de "Uma Correspondência" (IV)


"Segunda-feira

Desde que comecei a escrita do diário vejo que te interessas ainda muito por mim.


Terça-feira

Sinto que desejas ler o que escrevo.


Quarta-feira

Hoje removi as pedras no horto para que pensasses que escondia aí estas páginas. E, de facto, tu repetiste os meus gestos e ficaste desiludido.


Quinta-feira

Leio nos teus olhos que estás a sofrer. Então é verdade que ainda me queres bem.


Sexta-feira

Hoje quero que encontres estas pequenas linhas e percebas que és a minha vida."



Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria,
trad. de Mário Rui de Oliveira, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A de Abrigo


ABRIGO DOS CÉUS


Eu tenho desejado ir
Onde as primaveras não falham,
Aos campos onde moscas, atrevidas e astutas, não habitam,
E alguns lírios nascem.

E tenho pedido para estar
Onde nenhuma tempestade há-de chegar,
Onde a corrente verde está abrigada e muda,
E fora da oscilação do mar.


- Gerard Manley Hopkins
in Piolho n.º 11, trad. Ricardo Marques,
Edições Mortas / Black Sun Editores, Agosto 2013


*


"[...]
Desiguais abismos, maneiras de se
se estar só, encontram aqui um abrigo
temporário, senão a própria rasura do tempo.

[...]"


- Manuel de Freitas, Juros de Demora
Lisboa, Assírio & Alvim, 2007


*


"[...]
ao abrigo do vento e da solidão que não tardaria
a descobrir o nosso esconderijo.

[...]"


- Renata Correia Botelho, Small Song,
2.ª ed., Lisboa: Alambique, 2015


*


"[...] estar ao abrigo do fim do amor, é a isso que eu chamo felicidade."


- MARGUERITE DURAS





[ID, 5 de Setembro de 2017]

domingo, 3 de setembro de 2017

D de Domingologia (II)


Entra agora
a infância toda
aos bocadinhos, ossos

no chão, engomados
domingos a beijar
avô, bisavô

trémulo na Rua
dos Dous Amigos, casas
pequeninas
guardadas em caixotes.

Entra agora a jarra
de flores, a mesa
limpa e a janela

abrindo.


José Carlos Soares, De passarem aves
Coimbra, do lado esquerdo, 2014





[ID, Sintra | 04/017]

domingo, 20 de agosto de 2017

C de "celui qui regarde une fenêtre fermée" (III)



[ID, Lisboa | 06/011]



GATO EM APARTAMENTO VAZIO


Morrer - isso não se faz ao gato.
Pois que há-de um gato fazer
num apartamento vazio. 
Ir arranhando as paredes.
Roçar-se por entre os móveis.
Por aqui nada mudou
mas está mais que mudado.
As coisas estão nos sítios,
mas os sítios outros são.
E nem se acende a luz pela noitinha. 

Ouvem-se passos na escada,
todavia, não os tais.
A mão que põe no pratinho o peixe
também não é a que antes punha. 

Algo aqui não acontece
às horas que acontecia.
Algo há aqui que não corre
como devia correr. 
Alguém aqui esteve, esteve,
e agora teima em não estar.

Vasculhados todos os armários.
Percorridas todas as prateleiras.
Uma vez verificado o chão sob a alcatifa.
Contra todas as proibições até,
espalhados os papéis. 
Que é que fica ainda por fazer.
Dormir e esperar.

Deixa-o só voltar,
deixa-o lá mostrar-se.
Há-de aprender
que com um gato não se brinca assim. 
Há-de um bicho ir-se chegando para perto,
como quem não quer a coisa,
bem devagar,
muito sobre as patinhas ofendidas.
E ao princípio nada de saltar nem de miar.


Wislawa Szymborska, Paisagem com grão de areia, 
trad. de Júlio Sousa Gomes, Lisboa, Relógio D' Água, 1998




[ID, Lisboa | 04/015]

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

F de Fosforologia



PATERSON, 2016 (JIM JARMUSCH)


Os poemas são como o mundo: não rimam. Voltam, desaparecem, tentam dizer o peso da água ou o aroma ténue da cerveja. São uma trela no escuro, depois de termos queimado todos os fósforos. Escrevemos, num caderno vazio, a palavra ausência. Talvez amanhã seja outro dia.

[...]



- Manuel de Freitas 
in Telhados de Vidro n.º 11, Lisboa, Agosto de 2017




Jim Jarmusch, Os limites do controlo (2009) | Paterson (2016)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

I de "I want to ride my bike" (X)



E. M. CIORAN

R de 'Respirar debaixo de água'


A MINHA IRMÃ


Passava as horas recostada no sofá, ela
era chuva e cascata do beiral.
Aumentava o volume para não ouvir os passos
cansados no corredor.

Ela sabia correr e encher de ar os seus pulmões,
mergulhar quatro metros abaixo de água
até obter importantes troféus de bronze.

Uma vez pensei no perigoso que era suster tantos minutos a respiração,
cheguei a acreditar que desapareceria para sempre.
Vivia a ilusão do não regresso: afundar-se abaixo do nível,
alguns centímetros abaixo do nível. Ninguém se sente bem na tempestade sempre.

Para permanecer é necessária a descida.


Jeannette Lozano (trad. Inês Dias)
in Telhados de Vidro n.º 19, Lisboa, Averno, Maio 2014





[Imogen Cunningham, "Aiko's hands", 1971]

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

S de Santa Cruz (XVI)




[ID, 'Do (meu) mundo', 08/017

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

C de Começar o dia com um livro novo (XXXIX)


SOBRE OS PERIGOS DE TOCAR MÚSICA MEDIEVAL
- para Inês Dias e Ana Isabel Dias


Hipnotizantes, as pequenas mãos da harpista, pousadas,
balançando cada lado do espelho

que é ruído branco da cascata,
impedindo-nos de fazer a travessia para o Vazio.

Quando aquelas mãos voam, uma em direcção à outra,
o erotismo de ver e de tornar órfico,

- uma calma mais profunda no som - também a harpista,
arriscando-se a perder o toque que os seus dedos devem ter,

está em perigo de se hipnotizar a si mesma
com a sua própria e bem ensaiada divindade.


John Mateer, Descrentes,
trad. Andreia Sarabando, Coimbra, DSO, 2015





[ID, 'God is in the details', Londres | 2014]

A de "até que os fios do coração"


SOBRE O LADO ESQUERDO


     De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
     No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».


- CARLOS DE OLIVEIRA




[14/03/011, às 7h40]

segunda-feira, 31 de julho de 2017

I de 'I want to ride my bike' (IX)




Jeanne Moreau
[1928-2017]

domingo, 30 de julho de 2017

C de "Chama a luz com um assobio" (II)


CASTELO DA BAIXA-CHIADO


As escadas, no coração da terra.
à hora tardia de julho. Cantava, na galeria
deserta, um mundo a que nunca pertenci.

Cantava, cantava sempre. A ondulação do verso subia
das águas fundas do Tejo, desfazia num murmúrio
a mágoa da sua voz

lançava, não a parede
de um fado, mas o túmulo do destino: violência inerte e fértil
dissolvia no céu vazio do verão

nos azulejos em eco
viajava no pátio e nas veias da cidade
sem valor e sem préstimo a que possa recorrer, sem
vislumbre de qualquer esperança

era a toada mercadora dos vermes brancos do fado
«que queres ouvir e ver e tão perto?» (parecia perguntar-me) e
avançava na espessa noite da terra
deteve-se no meu caminho

junto às ribeiras do rio, perdia-se
resto de lívida luz. A voz já não cantava
medida da perdição

bem próximo da minha pele. Alguém
apaixonado, compreenderia num olhar
o que não tinha nome em nenhuma outra língua

nem lugar em nenhuma outra pátria. A carruagem corria (taça de
metal branco) o timbre da sua voz
pela noite de Lisboa
sorte que está connosco
pronta a gerar plantas que envenenam a vida

num leito de folhas mortas.


João Miguel Fernandes Jorge, Castelos I a XXXV,
 Lisboa: Averno, 2004

sexta-feira, 28 de julho de 2017

segunda-feira, 17 de julho de 2017

R de 'Rezar na era da técnica' (XXV)


Um dos poemas lidos ontem, 
no Paralelo W, pelo Nuno Moura:




in Poemas Ameríndios - mudados para português por Herberto Helder,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

sábado, 8 de julho de 2017

E de Efeito Borboleta (V)


R de Regresso ao/do Trabalho (LI)





à saída do turno, na mudança de turno
de novo a névoa pelos ossos
a alma trata de si e por favor não me fales da noite
o tempo perdido pelo caminho
com essa coisa comerciante

mãos nos bolsos
subindo a estrada, entre as canas da índia
dentro das ruas como nos desenhos
até chegar a estas palavras

ardeu tudo há muito tempo
andamos com restos no bolso, um minuto por vigiar
como almas penadas, aquelas que erram
sem poderem regressar
nunca
ou não era bem assim


João Almeida, A Formiga Argentina,
Lisboa: Averno, 2005




[ID, 'Aqui a tua casa: esta névoa', São Miguel 015]



*



PARTE POÉTICA


Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos
por dia, pois levanto-me tarde e primeiro
há que lavar os dentes, suportar os incisivos 
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados, 
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.

E chegar à noite a casa para a prosa do jantar,
o estrondo das notícias, a louça por lavar.
Concluindo, só pelas duas da manhã
começo a despir o fato de macaco, a deixar
as imagens correr, simulacro do desastre. 
Mas entretanto já é hora de dormir. 
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.


José Miguel Silva, Últimos Poemas,
Lisboa, Averno, 2017

terça-feira, 4 de julho de 2017

segunda-feira, 3 de julho de 2017

C de "(O) começo de um livro..." (VI)


Não se regressa aos mortos:
eles expulsam-nos de qualquer regresso.
[...]




Rui Nunes, Lampedusa,
com arranjo gráfico de Luís Henriques,
Lisboa, Paralelo W, 2017

segunda-feira, 26 de junho de 2017

C de Carrosséis (XVIII)




Nunes da Rocha, Poemas obsoletos de um bicho imóvel,
Lisboa, Averno, 24 de Junho de 2017

C de Carrosséis (VII)




"I used to know a little square/so long ago, when i was small/all summer long it had a fair/wonderful fair with swings and all/I used to love my little fair/and at the close of every day/I could be found, dancing around/a merry-go that used to play//ah, mon amour/à toi toujours/dans tes grands yeux/rien que nous deux (...)"

sexta-feira, 23 de junho de 2017

P de Poética (LXII)





Ricardo Marques, A Noite [Variações],
com capa a partir de colagem de Rui Pires Cabral e arranjo gráfico de Inês Mateus,
Lisboa, Alambique, 2017


quarta-feira, 21 de junho de 2017

P de Pele (V)




[Imagem de Splendor Solis
um tratado alquimista alemão de 1582]

quinta-feira, 8 de junho de 2017

O de "Onde se lê 'gato'..." (XII)


QUE FAÍSCA FUGIU DO TEU OLHAR *


Nunca consegui despedir-me
dos meus mortos. Porque partíamos
para outras cidades, outras ruas, outros
sítios de despedida. Transporto
comigo esses finais antecipados,
novelos sem ponta, mimeses
sucessivas.

Mas os meus animais
sempre de mim se despediram, desde
o tigre doméstico, envenenado no quintal
por uma velhinha sinistra que
queria preservar as alfaces,
até ao meu último cão, escondido
no último dia, no canto mais escuro
da garagem, um sítio de partidas
que ele conhecia.

Vem dos animais
uma tal inteireza, um até ao fim, até
que a morte nos separe, tão intensamente
farejado, tão comovidamente lambido. O clarim
de um miado ao abrir a porta. O latir
de todas as chegadas. A probidade
do humilde estado de andar
a quatro. A alegria arcaica de trincar, rilhar
o esburgado osso, o looping de garras
fulminantes para suster um voo. Endoidecer
ao cheiro do pescado. Escutar
sons inaudíveis, danado de atenção.

Só os nosso animais nos lançam longos e
verdadeiros olhares de saudade, antes
de partirem, na sua perfeita condição
de seres indivisíveis, para a ventura de
nenhum hades, nenhum céu.


* verso de um poema de Ruy Belo


Inês Lourenço, Logros Consentidos,
Lisboa, & etc, 2005




[O Barnabé,
fotografado pela sua Inês]

domingo, 4 de junho de 2017

sexta-feira, 2 de junho de 2017

V de Vida (IX)




Como falava ele ao pequeno-almoço,
quando abria o verso
sobre a onda que nunca rebentava?
Riscava o coração com aparos
de prata
e num êxtase diário subia ao sótão das palavras
a perguntar por Deus?

Qual a distância entre a criatura
e esse muro indiscreto de suor e sonhos
esse labor de mãos sujas de tinta
essa estrada de nada
e de madeira
esse quadro infantil retido na sanita
esse cuco soturno que afinal é um logro
esses passos perdidos na flanela do tempo
a pequena sílaba que descia do queixo
num líquido sabor a maresia
esses gestos de enfado e paciência
que ajudam a memória a subir ao palco
esse pulso cortado pela lâmina de barba
por fazer e é preciso chegar cedo ao concerto?

O gato dorme no colo.
O cão sabe de cor um soneto de Antero.
A rodilha das mãos espremida
em desespero de causa.
A carne sempre à espera de um talho mais discreto
nos sons, no sangue, na exposição das entranhas.
Chegou o intervalo e a história não acaba.
Acabou o poema e a vida ainda não chega.


Armando Silva Carvalho, Lisboas,
Lisboa: Quetzal, 2000

quinta-feira, 1 de junho de 2017

P de Pássaros anónimos (X)


O CORVO


O céu desta cidade não me vence.
Ao ver a lua cheia num rasgão de nuvens
esqueço-me das casas da minha casa,
das ruas da minha rua, das vidas da minha vida.
Há uma noite acesa no meu mundo.

E tu deitas na mesa.
Primeiro as mãos que não querem esperar
pelo corpo à beira do colapso
que julgo financeiro
em matéria de sexos pois são muitos e novos
os que tu disfarças.

Depois vem o aparelho da fala com a tua metafísica
varrida por vassouras de metal pungente
que correm pelo teu rosto e tu tão bem disfarças
com a faca do riso entreaberta.

Por fim o teu cabelo. É belo olhá-lo.
E belo vê-lo pousar como um corvo
na toalha branca do jantar.
E ver por fim a natureza que te ocupa
o órgão do prazer,
a música de Bach ou o ramo de luz
que cresce dos teus olhos.

Não vejo o teu coração, deixei de ver a lua.
E o céu desta cidade não me vence.


segunda-feira, 29 de maio de 2017

S.T.T.L.





[...]
Já referi que São Francisco se recusava a deixar de ver as árvores por causa do bosque; mais ainda, também se recusava a deixar de ver os homens por causa da multidão. Aquilo que distingue este democrata genuíno de um mero demagogo é o facto de nunca ter enganado os outros nem se ter deixado enganar pela ilusão da sugestão de massas; por muito que gostasse de monstros, nunca viu diante de si um animal com muitas cabeças: apenas via a imagem de Deus, multiplicada, mas nunca monótona. Para ele, um homem era sempre um homem e, se não desaparecia no deserto, também não desaparecia no meio de uma densa multidão. [...]

G. K. Chesterton, São Francisco de Assis,
Lisboa: Alêtheia Editores, 2013

terça-feira, 23 de maio de 2017

domingo, 21 de maio de 2017

D de Da Capo




[Inês Dias, Um raio ardente e paredes frias,
 com capa de Luís Henriques, Lisboa, Averno, 2013]


*



sexta-feira, 19 de maio de 2017

P de (Po)ética - LIX




"[...]
que el arte es largo y, además, no importa."

- ANTONIO MACHADO

segunda-feira, 8 de maio de 2017

P de Postais - V c


[...]
Primeiro olha para mim. Muito. Diz-lhe Eu só sei
fingir e correr
pela calada. Finjo que te amo quando caminhamos
por uma zona onde podemos ser assaltados.
Eu finjo a coragem e o acolhimento.
Chego-te para mim para que não percebas como o
meu medo gelou esta zona perigosa. Só que eu começo
a tremer e sugiro-te um pouco desse frio.
Então trememos os dois
no frio do meu medo, de braço dado, passo mais rápido,
confundidos, de braço dado, ausentes um do outro,
rasteiros.
Em silêncio após vários dias, continuamos.
E ainda hoje continuamos.

[...]


Nuno Moura, A Minha Casa,
Lisboa, Tea For One, 2016





[ID, 'Parallel Walks', 013]

terça-feira, 2 de maio de 2017

S de Self (III)


77


começa a alvorada como se houvesse outras mais
irá florir a ameixoeira na varanda
e a indestrutível batata-doce

perdi um amigo
talvez dois
desencontrámo-nos, quebranto de encruzilhada
ou por simples fastio

é verdade que não sou íntegro
nem honesto, caio por pouco sem ninguém saber

para fugir à dor na estrada desavinda
por um afago de mão enganada na barriga

mas hoje imponho-me a alegria da rectidão
arrumei a roupa e tomei banho

saio sem pecado para o conhecimento da manhã
aonde quer que me leve


João Almeida, Um milagre no caminho,
Lisboa, Averno, Maio de 2011

sábado, 29 de abril de 2017

D de Dansa (VII)



segunda-feira, 24 de abril de 2017

L de Ler (XIII)




Lá fora
ainda temos luz,
sem esquinas,
dessa que se deixa
às vezes ficar
como a cintura da jovem
junto ao braço do velho
no mesmo banco,
condoída da nossa prisão.

Mas deste lado de mim 
está a cortina da noite,
atrás da noite
a escada que sempre subi 
à tua frente,
dentro da escada
um rato
a escavar, a escavar
por entre os séculos.

E dentro do rato
um coração com urgência
de anjo exausto,
todo o sangue emparedado
da mais solitária personagem
neste nosso romance
com nome de jardim.


Inês Dias, Da Capo,
com capa de Luis Manuel Gaspar, fotografias de Mafalda Capela 
e arranjo gráfico de Inês Mateus, Lisboa, Averno, 2014

sábado, 22 de abril de 2017

C de Começar o dia com um livro novo (L)


PONTO DA SITUAÇÃO


Hoje, eis o que tenho para dizer
Chegou a Primavera
No sangue ligeiro da camarera
Curvada na secção dos detergentes

Ela sabe o bem que traz ao mundo 
- Fearful symmetry... sem dúvida
É bom não ter dúvidas

Ou seja
Não vale a pena andar com o maldito no cu
Tampouco com os guizos da alma à mostra

Segue o corpo
Dá-lhe pousio e esgotamento.


João Almeida, Hotel Zurique,
com capa de Luís Henriques,
Lisboa, Averno, 2017



sexta-feira, 21 de abril de 2017

quinta-feira, 20 de abril de 2017

M de Meia-estação (IV)


Sempre acreditei que só as palavras
me saíam da boca, e eram elas
que me podiam adiar a morte.
Hoje sei que me sai da boca um fio,
transparente e tenaz como uma insónia,
que te atou à minha vida para sempre.


Amalia Bautista, Estou Ausente,
trad. de Inês Dias,
Lisboa, Averno, 2013




[ID, Santarém | 2017]

terça-feira, 18 de abril de 2017