sexta-feira, 20 de abril de 2012

A BIBLIOTECA ESTÁ A ARDER



Para Georges Braque




Neva pela boca deste canhão. Era um inferno na nossa cabeça. Ao mesmo tempo é primavera na ponta dos nossos dedos. É o rasto de novo consentido, a terra em paixão, as ervas exuberantes.


O espírito também vibrou, como tudo.


A águia pertence ao futuro.


Qualquer acção que envolva a alma, mesmo que ela o faça inconscientemente, terá como epílogo um arrependimento ou um desgosto. É preciso aceitar isso.


Como me apareceu a escrita? Como uma penugem de pássaro sobre as vidraças, no inverno. Gerou-se logo na lareira uma batalha de tições que, até agora, ainda não terminou.


Macias cidades do olhar quotidiano, encaixadas entre outras cidades, com ruas traçadas só para nós, sob a asa de relâmpagos que respondem aos nossos cuidados.


Em nós tudo deveria ser festa jubilosa sempre que acontece algo que não previmos, que não podemos explicar, que nos vai falar ao coração pelos seus próprios meios.


Continuemos a lançar as nossas sondas, a falar a uma só voz, com palavras reunidas, e acabaremos por fazer calar todos esses cães, por conseguir que se confundam com a vegetação, observando-nos de olhos turvos, enquanto o vento lhes apaga as costas.


O relâmpago dura-me.


Só existe o meu semelhante, a companheira ou o companheiro que possa despertar-me do torpor, desencadear a poesia, atirar-me contra os limites do velho deserto para que eu o vença. Nada mais. Nem céu, nem terra privilegiada, nem coisas que nos façam quebrar.
Tocha ardente, só com ele danso.


Não podemos começar um poema sem uma parcela de erro em nós e no mundo, sem um pouco de inocência nas primeiras palavras.


No poema, quase todas as palavras devem ser utilizadas no seu sentido original. Algumas, ao separarem-se, tornam-se plurivalentes. Outras são amnésicas. A constelação do Solitário está tensa.

A poesia vai roubar-me a minha morte.

Porquê poema pulverizado? Porque no final da sua viagem até ao País, após a obscuridade pré-natal e a dureza terrestre, a finitude do poema é luz, dádiva do ser à vida.

O poema não retém aquilo que descobre; depois de o transcrever, perde-o logo. É nisso que reside a sua novidade, o seu infinito e o seu perigo.

O meu trabalho é um trabalho de ponta.

Nascemos com os homens, morremos inconsolados entre os deuses.

A terra que recebe a semente está triste. A semente, que vai arriscar tanto, está feliz.


Há uma maldição que não se parece com mais nenhuma. Pestaneja numa espécie de preguiça, tem uma natureza afável, mostra-nos um rosto de feições tranquilizadoras. Mas, sob esse disfarce, que impulso, que salto imediato para o seu fim! Provavelmente como a sombra em que se apoia é maligna, uma região totalmente secreta, conseguirá evitar uma denominação, fugir sempre a tempo. E desenha, no véu do firmamento dos mais clarividentes, parábolas bastante assustadoras.

Livros sem movimento. Mas livros que se introduzem com leveza nos nossos dias, e provocam queixas, abrem bailes.

Como dizer ainda a minha liberdade, a minha surpresa, depois de mil desvios: não há chão, não há tecto.

Às vezes a silhueta de um jovem cavalo, de uma criança distante, aproxima-se da minha testa como um batedor e salta a barreira da minha preocupação. Então, sob as árvores, volta a ouvir-se a nascente.

Queremos continuar desconhecidos perante a curiosidade daquelas que nos amam. Porque as amamos.

A luz tem uma idade. A noite não. Mas qual foi o instante que gerou esta fonte inteira?

Não ter várias mortes suspensas, como se cobertas de neve. Ter apenas uma, de boa areia. E sem ressurreição.

Detenhamo-nos junto dos seres que se podem separar dos seus recursos, embora não tenham nenhum ou quase nenhum recuo. A espera mergulha-os numa insónia vertiginosa. A beleza oferece-lhes um chapéu de flores.

Pássaros que confiais a vossa graciosidade, o vosso sono perigoso aos juncos, quando o frio chega, como nos parecemos convosco!

Admiro as mãos que preenchem, e, para emparelhar, para unir, o dedo que recusa o dado.

Às vezes apercebo-me de que a corrente da nossa existência é bastante obscura, uma vez que estamos sujeitos à sua faculdade caprichosa, mas o movimento fácil dos braços e das pernas, que nos poderia levar até onde seríamos felizes, na margem cobiçada, ao encontro de amores cujas diferenças nos enriqueceriam, esse movimento continua inacabado, declinando rapidamente a sua imagem, como uma bolha de perfume no nosso pensamento.

Desejo, desejo que sabe, só o conseguimos retirar agora de algumas soberanias verdadeiras, ornadas de chamas invisíveis, de correntes invisíveis, que, revelando-se passo a passo, nos fazem brilhar.

A beleza faz sozinha a sua cama sublime, constrói estranhamente a sua fama entre os homens, ao seu lado mas afastada.

Vamos semear juncos e cultivar vinha nas encostas, à beira das chagas do nosso espírito. Dedos cruéis, mãos cuidadosas, este lugar distraído é-nos propício.

Aquele que inventa, ao contrário daquele que descobre, não acrescenta nada às coisas, traz aos outros seres apenas máscaras, intermediários, um caldo de ferro.

Por fim a vida inteira, quando arranco a doçura da tua verdade amorosa ao mais profundo de ti!

Fiquem perto da nuvem. Vigiem de perto as ferramentas. Todas as sementes são odiadas.

A caridade dos homens em certas manhãs estridentes. No desassossego do ar em delírio, subo, fecho-me, insecto devorado, seguido e perseguindo.

Perante estas águas, de formas duras, por onde passam em ramos desfeitos todas as flores da montanha verde, as Horas casam com deuses.

Fraco sol de que eu sou a liana.


René Char, Les Matinaux, suivi de La Parole En Archipel
[Trad. ID]

2 comentários:

Odracir disse...

Te sejam dadas Graças!

ID disse...

:)