sexta-feira, 5 de abril de 2013

R de (O) rio da minha aldeia (VI)


CASTELO DA PENA
 
 
 
Velha casa de Sintra. À demorada parede
chegou o  musgo do outono.
Trouxe comigo as duas raparigas que
me enviaste, em fotografia, na última
carta. Demorado oval
vindo de longe, rosto que foram no
início do século passado.     À sua
entrada sentaram-se de vestidos brancos com
rendas de Benavente no colar do peito.
 
Deram as mãos, grato sorriso
pelo tempo que lhes foi futuro.     Botas bem
atacadas, espreita a brancura da meia, realce da
pele queimada pelo sol da beira Tejo. Esfolões
na correria.     "Foram avós e entraram
num poema que nunca leste. Uma delas
lembrava-se de ter beijado a mão ao rei Manuel
por altura de uma cheia memorável."
Não sei a desrazão das duas
meninas desenhadas num cenário de rebentação
ribeirinha.     Ondas do mar do Tejo.
Olhos plenos de uma noite serena quando um
rapaz, o remador, lhes falou em voz baixa no vão de uma janela
até perceber qual lhe oferecia o riso mais eterno.
 
Descansa o remador, com uma história de
afogado nos lábios. Vai contar: "esse bocado de
carne"     Nos vidros das janelas
o resplendor da serra bate no espelho
de prata; clarão cerrado no óleo dos retratos.
Não sei que pé direito das raparigas
chutou a morte com um ruído surdo - o
remador, aquele que se põe a contar afogados sonhos
 
desce, sobre a vila, a névoa de outono; as meninas,
amarrotado laço no escuro, submergem na
terra amolecida da lezíria. "Fúcsias envasadas no mês
do inverno", oiço os lábios do remador.
Uma noite longínqua no castelo de Sintra. Remador
de um tempo perdido,
em voz baixa
indica o assento na sombria barca, rema o clamor
no deserto do rio.
 
 
João Miguel Fernandes Jorge, Castelos - I a XXXV,
Lisboa: Averno, 2004
 

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