BWV 988
Talvez tudo fosse diferente
se o mundo tivesse começado tão bem
como as variações Goldberg.
Não sei, não quero saber, não faço ideia.
Eu, que da arte nada quero,
estou há vários meses sem escrever
um poema. Mas agora, aqui,
sou trespassado por uma cama
demasiado larga e pelo olhar
negro do gato que se apieda, talvez,
de mim. De uma certa ideia de mim
que acorda às quatro da manhã
para a mais ampla noção de vazio.
Felizes, mais ninguém, os que
se matam e não têm um gato
a servir fixo de remorso
nas dobras sujas dos lençóis.
Esses, apenas, que não procuram
de rastos a certeza de outro dia.
O amor? Talvez, quando um cadáver
se recria e afaga penosamente
a morte de que de uma maneira ou
de outra se morre. Quem me dera ser
menos realista, menos real,
menos permeável ao desgosto.
Mas a verdade é esta: partiste
a meio da noite, fodemos pouco e mal
e quando a janela me guilhotinou
já um táxi te levava
para longes terras da cidade em pânico.
É tudo – sabes? – tão dolorosamente simples.
A mão que não quer esperar-me,
o rumor sórdido dos bares,
a certeza de que a vida, a vida,
não deveria ser exactamente assim.
Reúno, numa espécie de voz,
esses estilhaços. Sei que não vale
a pena, sempre o soube.
Há os que se despedem e os que não.
E, indiferentemente, progridem
as diferentes coisas. Carteiros
matinais, aviões, poetas que dão
corda à musa e escolhem
devagar o timbre da gravata.
Estão no seu direito, partilham
o bem comum, a cidadania do terror.
E eu, infelizmente, existo. Abro
outra lata de cerveja, sob
o olhar reprovador do gato. Sim,
gostava de ser felino – uma coisa
mansa, dolorosa, ao abrigo da tormenta.
Mas li demasiados livros, fumo
pelo menos três maços e não me
parece que volte a acreditar em Deus
(se nem Bach me convence, estou perdido).
E, porém, há nisto uma simplicidade
atroz. A demorada asfixia
das veias, percutindo a noite, a certeza
óbvia de que não estás aqui.
Que música, sequer, me redimiria
agora? Vou morrer assim,
de costas para os espelhos. A sabê-lo.
Deve ser isso, a dor.
O cancro da manhã infiltrando-se
pela janela, como se eu pudesse
num mundo adiado, palco já sem mim.
Ou o olhar que te viu e deixou
de ver e percebeu subitamente
que um corpo, um corpo apenas,
é matéria de desastre, pronúncia errada.
A música, claro, se tivéssemos
música, qualquer coisa assim.
Em vez disso, os órgãos acomodam-se
ao suplício dos minutos, desagregam-se.
E bastarias tu – ninguém, porque
ninguém basta. É um erro – mas gostamos
tanto – pensar que um rosto nos salvará
disto que não sabemos ser, de nós.
Esse pronome pessoal, o inferno.
E é estranho, no mínimo, que o mundo
saiba acontecer, apesar. O silêncio desta dor
devia calar o universo, dinamitar arredores.
Mas não, desiste. Desiste até de desistir.
Não será este o último poema, por mais
que o julgues ou sintas (e os versos,
para ti, foram sempre sentimentos vãos).
Acordarás sinistro, quase vertical,
para as tabernas disponíveis.
Dizem que abusas. Talvez.
Como explicar-lhes, a esta hora,
que nessa retórica gasta
comprometes a vida toda?
Nunca te leram – ou mal. E o grito
permanece incólume no susto da manhã,
nas paredes mais escuras que encontrares.
O mais estranho não é a literatura,
o solene esgar da poesia.
Mais estranho, sempre, é sobreviver
a isto, fingir que não, sorrir.
Enquanto o olhar negro negro
de um gato testemunha a tua morte
e se despede melhor do que tu
da música e dos dias e da música.
Qualquer coisa assim.
Manuel de Freitas, [Sic],
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002