quarta-feira, 19 de novembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" (III)


PEQUENOS CRIMES ENTRE AMIGOS


Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo -
com cuidado, por favor -
quando estiver mais frio;
ou enterrar os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014




[Detalhe de Francisco Zurbarán / 1655]