CRIATURAS
Hamlet descobriu-as nas formas das nuvens,
mas eu vi-as na mobília da infância,
criaturas debaixo das camadas de madeira,
uma escondida num aparador polido,
outra franzindo o olho atrás de uma cadeira,
outra uivando no escritório silencioso de minha mãe,
presa no grão do ácer, congelada em carvalho.
Também via estas silhuetas
no padrão em espiral do papel de parede,
e nos vários verdes de um candeeiro de porcelana,
cada uma parecendo tão melancólica, tão amaldiçoada,
algumas olhando para mim como se soubessem
todos os segredos de um rapaz enigmático.
Muitas vezes estava a sonhar acordado,
deitado na carpete, e uma aparecia junto de mim,
o nariz descomunal, o olhar vazio.
É pois fácil de compreender a minha reacção
esta manhã na praia
quando abriste a tua mão para me mostrares
uma pedra que tinhas apanhado à beira-mar.
“Não vês a cara?” perguntaste tu
enquanto a vaga fria tocava os nossos tornozelos nus.
“Aqui está o olho, a linha da boca, como se estivesse
a fazer uma careta, como se lhe doesse alguma coisa.”
“Bem, talvez seja porque tem um corte
que atravessa o comprimento da testa,
para não mencionar uma espécie de bico retorcido”,
disse eu, tirando-te a aberração da mão e atirando-a
por cima do brilho das ondas azuis
para que assim continuasse a levar a sua vida anormal
no escuro profundo do mar
e parasse de importunar veraneantes inocentes como nós,
parasse de estragar o verão a toda a gente.
Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques,
Lisboa: Averno, 2014
[ID, Madrid, 20/08/015]
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