ANINHAS
Um gato dorme ao meu lado, debaixo do meu braço direito, com o focinho apoiado na minha clavícula, seguro de que não me moverei nem desmontarei o abrigo em que se aninha, junto ao meu corpo. Sinto-lhe o pulsar, a respiração das árvores que lhe duram quatro estações num segundo de peito. Da inspiração à expiração, um ano de crescimento definha-se no seu sopro; como nas imagens míticas do vento encabeçando os pontos cardeais. Embala-me — seja eu um dorso de madeira flutuando entre mares — e embalar-me-á. O meu gato é o meu tempo. E o meu tempo é este tempo em que tenho os sonhos de um gato por companhia. Por ele trocaria o tempo em que sou apenas abrigo para animais domésticos.
— só deus mora nos gatos.
Gostaria de ter por casa o interior de um sonho em que apenas se recorde o negativo extraído ao mundo. Sonhar-me estática ou em movimento através da passagem da luz pelos slides; imagens projectadas a sépia contra uma parede de maior idade — salpicadas a sépia todas as paredes são lamentos de outonos passados — sem futuro, parando na finitude de um encantamento menor em que deus ainda não havia sido privado do meu corpo.
— deus mora nos gatos, à falta de melhores dias no corpo dos vivos.
Beatriz Hierro Lopes, É Quase Noite,
Lisboa, Averno, 2013
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