domingo, 24 de janeiro de 2016

F de Fazer Fotografia (XLVIII)


partiu-se o pote de barro esférico _______ para flores, aspidristas, sobretudo, com relevo de ramo e pássaro. Era belo. Mas, quando olhou para o lugar vazio que deixara, principalmente a auréola de sujo que corroera o verniz do sobrado, a mulher reparou que os seus cacos formavam no chão um pregueamento de extrema beleza. A própria terra do vaso não destoava, nem as aspidristas pareciam sofrer com o sucedido. Em vez da irritação que deveria ter sentido, e a teria obsessivamente levado a repor rapidamente o quadro anterior, ficou de pé, hesitante, a cismar sobre o significado de ter sido liberta de "um" belo inferior que, até àquele momento, considerara como perfeito. [...]

Apenas não reparou que acabara de mudar de vida.


Maria Gabriela Llansol, Parasceve,
Lisboa, Relógio D'Água, 2001



*



«He loved beauty that looked kind of destroyed.»


Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.


Rui Pires Cabral, Oráculos,
Lisboa, Averno, 2009

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