terça-feira, 24 de março de 2015

J de (O) Jardim e a Casa (X)


E maio empregara-se nos jardins com uma velocidade ao pé do esplendor, e tu escrevias errado que não chegara a ser branco, e uma máquina esquecia-se e aparecia o paraíso azul numa parte e amarelo, e as estátuas diziam sempre a minha lembrança da luz, e voltavam-se para a esquerda e para a direita à procura dos perfis, e a tua blusa fremia como se uma nuvem viesse por baixo, e era tudo um instante em redor do exercício cândido, e as mãos ocupavam-se em ter dedos - era maio: afluente do desejo, bom-dia eu estou nu, bom-dia eu estou nua, e o sol tirava o retrato de corpo inteiro, e de repente havia um grito narrativo, e a noite ia de um lado para o outro na voz espantosa de crianças completamente obscuras, e o perfume aterrador do sangue trabalhava na sua voz estrangeira, e as colinas afastavam-se para dar passagem à nossa ausência tremendo de febre - depressa - dizia uma magnólia cega, e o radar indicava os passos queimados em volta do êxtase, e a imprensa redigia a morte entre parênteses distraídos, e virando de leve a cabeça um para o outro não havia auréolas, e partíamos para a virgindade com a vocação de um crime, e já íamos dormindo e sonhando com os pulmões a ferver.


Herberto Helder, Vocação Animal,
Lisboa: Publicações D. Quixote, Maio de 1971




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