terça-feira, 1 de julho de 2014

Q de "Que a alegria em mim permaneça"


OXFORD STREET, ESQUINA COM ORCHARD STREET:
A GAITA DE BEIÇOS


Se chegássemos à alegria por uma escada de incêndio
tu arranjarias maneira de descer tocando
a música modesta sempre a mesma
que em Setembro na tua cadeira de rodas
se a alegria: duas três frases curtas
sopradas ao passante (e o cabelo
encardido (a sujidade do pobre vista à luz
se arranjasses maneira: um belo salto
cheio de swing

acaso vou agora até ao fim dos meus anos
lembrar-te como estavas
sentado de través tocando con brio
dissimulado à esquina: isto em Setembro
sob o oiro de um sol que bate forte
a música nos beiços (qualquer coisa
de rarefeito e por aí
tão brutalmente alegre - diria comovente (1)

se a alegria: o que chamamos alegria
com o pudor da meia idade
tu aqui tocando por alguns peniques
duas três frases muito curtas
os pombos que baixam da cornija
os autocarros (sopradas como exemplo

se então houvesse um fogo em todos nós
e a tua boca (o sebo no casaco: arranjarias
maneira de levar-nos os que já
não ouvem nem se falam nem
(alegre; sujo e alegre
inquietante neste mundo
onde comemos até o coração


(1) - que esperar da Europa?/ as ruas pardas/ desidratam a imaginação/ o século XXI devia ser amanhã



Fernando Assis Pacheco, Memórias do Contencioso e outros poemas,
Porto: erva daninha, 1980

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