quinta-feira, 30 de junho de 2011

A de Aniversário (V)

HOROSCOPES FOR THE DEAD


Every morning since you disappeared for good,
I read about you in the daily paper
along with the boxscores, the weather and all the bad news.

Some days I am reminded that today
will not be a wildly romantic time for you,
nor will you be challenged by educational goals,
nor will you need to be circumspect at the workplace.

Another day, I learn that you should not miss
an opportunity to travel and make new friends
though you never cared much about either.

I can't imagine you ever facing a new problem
with a positive attitude, but you will definitely not
be doing that, or anything like that, on this weekday in March.
And the same goes for the fun
you might have gotten from group activities,
a likelihood attributed to everyone under your sign.

A dramatic rise in income may be a reason
to treat yourself, but that would apply
more to all the Pisces who are still alive,
still swimming up and down the stream of life
or suspended in a pool in the shade of an overhanging tree.

But you will be relieved to learn
that you no longer need to reflect carefully before acting,
nor do you have to think more of others,
and never again will creative work take a back seat
to the business responsibilities that you never really had.

And don't worry today or any day
about problems caused by your unwillingness
to interact rationally with your many associates.
No more goals for you, no more romance,
no more money or children, jobs or important tasks,
but then again, you were never thus encumbered.

So leave it up to me now
to plan carefully for success and the wealth it may bring,
to value the dear ones close to my heart,
and to welcome any intellectual stimulation that comes my way
though that sounds like a lot to get done on a Tuesday.

I am better off closing the newspaper,
putting on the clothes I wore yesterday
(when I read that your financial prospects were looking up)
then pushing off on my copper colored bicycle
and pedaling along the shore road by the bay.

And you stay just as you are,
lying there in your beautiful blue suit,
your hands crossed on your chest
like the wings of a bird who has flown
in its strange migration not north or south
but straight up from earth
and pierced the enormous circle of the zodiac.

 
- Billy Collins
(2011)


B de Biorritmo (XCVII)

Sonhou-se hoje:




[...]
Si more cantando,
si more sonando
la Cetra, o Sampogna,
morire bisogna.
Si muore danzando,
bevendo, mangiando;
con quella carogna
morire bisogna.
[...]

quarta-feira, 29 de junho de 2011

T de Tratado de Pedagogia - II b

INTRODUÇÃO À POESIA


Peço-lhes que peguem num poema
E que o segurem contra a luz
Como um slide de cores

Ou que encostem o ouvido ao seu formigueiro.
Eu digo-lhes para lançar sobre ele um rato
E contemplá-lo, enquanto encontra uma saída,

Ou que entrem dentro do seu quarto
e tacteiem as paredes na procura do interruptor.

Quero que façam ski
Sobre a superfície do poema
Saudando o nome do autor na margem

Mas tudo o que querem fazer
É atar o poema a uma cadeira
E tentar arrancar-lhe uma confissão.

Começam por bater-lhe com uma mangueira
Para perceber o que realmente quer dizer.


- Billy Collins
[Trad. Ricardo Marques]

T de Tratado de Pedagogia (XXXV)

If you have to teach poetry, strike your blackboard with the chalk of light.

Lawrence Ferlinghetti, Poetry as insurgent art
[Válido, mesmo quando os quadros já são brancos, o giz foi substituído por marcadores e passamos quase mais tempo a escrever relatórios do que a ver a luz nascer.]

terça-feira, 28 de junho de 2011

F de "(Une) Famille d'Arbres (II)

RELATÓRIO DE AUTO-AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO


Para Abel de Freitas


Faz hoje um ano que o vi pela última vez vivo. Vivo… sem mexer praticamente o corpo, alimentado à força, de olhos teimosamente fechados e rito de dor. Mas procurou-me a mão, apertou-a, com a força possível, e há algo de dolorosamente consolador em saber ainda de cor esta data, como se lembrá-lo me protegesse, por sua vez, do esquecimento dos outros.
Durante uma semana, aprendemos os horários dos comboios, qual o lado da sombra – que nem sempre coincidia com o do rio –, as horas das visitas, os corredores mais suaves. Nem era tanto esperança, apenas a liberdade que vinha de estarmos por enquanto entre a vida e a morte, entre uma cidade e outra, entre a resistência e a aceitação – a tal viagem libertadora entre a cadeia e o tribunal onde se ouvirá a sentença, que repeti tantas vezes nas minhas viagens e citei nos meus textos.
E, tirando a camisa escura que comprei na manhã seguinte para o funeral e que nunca mais consegui usar por me lembrar uma mortalha, as imagens dessa semana são inesperadamente luminosas. O primeiro pássaro que fotografei a voar. A caixa de música à entrada do hospital. A coragem de esperar. O azul das últimas flores que ele olhara. O descer as escadas ao fim da noite mais comprida e ter alguém à espera para procurar comigo os ciprestes perdidos na cidade.
Claro que o buraco no coração aumenta. É mais um que faltará doravante à chamada e já passou um ano inteiro de ausência. Um ano de gatos que nasceram e desapareceram, de árvores que caíram, de casas vendidas e ilhas cada vez mais distantes. Um ano que não bastou para lhe descobrir ondas suficientemente belas para a eternidade. E escrevem-se relatórios que nunca poderão levar selo branco, nem caber em poemas, mas que nos ajudam a ganhar balanço para mais um ano em que todos os cães nos lembram o pelo morno da Rebeca já morta, em que nadaremos sempre mais sozinhos, em que teremos medo pelo que ainda nos resta perder. Os pais nunca nos deveriam morrer, insiste o meu coração egoísta. Se lhes sobreviver, quem estará ao meu lado quando ficar doente outra vez? Quem se sentirá tão mortal e sozinho como eu? Quem parará de viver comigo, em vez de me relembrar que o mundo continua lá fora, sem mim? Quem me exigirá que seja melhor, mesmo que esse melhor se resuma a sobreviver?
Mas um gato de olhos verdes vigia-nos a solidão, nunca nos deixando ficar demasiado tempo do lado oposto da casa. Os amigos vão chegando e tentando preencher o buraco no nosso coração. Não nos deixam descansar enquanto não o pusermos de novo a funcionar, por muito que doa ao princípio respirar e tudo pareça sal sobre uma ferida aberta sobre outra ferida ainda. Aprende-se, aos poucos, a brincar com a crosta da ferida, a utilizar o espaço vazio para acolher mais pessoas, mais sentidos. Crescemos, mesmo com o nosso coração esburacado, como Michaux nos explicou. E, entre todos, talvez consigamos reconstruir um coração inteiro, partilhável, que ajude a sobreviver ao ritmo certo. A noite fica para trás; é tão precioso ver a manhã a nascer ao fundo da estrada e ir ao seu encontro, sem ter verdadeiramente pressa de chegar.


Período em avaliação: 28 de Junho de 2010 a 28 de Junho de 2011
A avaliada: ID

G de Golpe d'asa

If you call yourself a poet, don't just sit there. Poetry is not a sedentary occupation, not a "take your seat" practice. Stand up and let them have it.

- Lawrence Ferlinghetti, Poetry as insurgent art

segunda-feira, 27 de junho de 2011

R de Regresso ao Trabalho (XV)





domingo, 26 de junho de 2011

sábado, 25 de junho de 2011

P de Poética (II)

[...]

  • A rigidez dos carteiros não poderia ser desfeita pela técnica. Fazer versos, contar histórias, inventar a cura para todas as doenças e a arma infalível em qualquer guerra: modalidades de um viver exterior em que se perde a solidão, a compaixão que fica nuns passos para cá e para lá, no escuro da noite, junto ao mar, acompanhando o grito antiquíssimo, todos os gritos elididos na caixa branca e no seu destino certo - a Quinta do Anjo. Atravessar o deserto em direcção a um gesto simples e sem remédio - lançar-se no destino, cumprimentar o sol, era esse o modo como o poeta fazia estremecer a vida fossilizada. Preferiram esquecê-lo. Preferem sempre trasladar os ossos, contar a história.

  • Querem que sejamos razoáveis.

  • Querem-nos mortos.

[...]


- Silvina Rodrigues Lopes, "Nada a declarar"
in Telhados de Vidro n.º 3 (Averno)

R de Realizar? (V)

Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo

A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
com os cães


- Ernesto Sampaio

sexta-feira, 24 de junho de 2011

D de Don't look down


A insustentável leveza do ser, este mês, em Lisboa.

T de (Uma) teoria de pássaros

LARES


I keep going back to that bird, snagged
by a halter or skein of fibre or yarn
and strung from the gutter of the opposite house
where it quartered the wind, each bead of its spine
and the dead-drop of its skull
lit up against the breeze-block wall,
claws pushed out as if skidding to a halt
while its beak transmitted code.

I say a prayer to you, small ghost,
small noosed spirit of the eaves,
dangling from the prow of the house
singing all four winds, the spindle and pin
and needle and thorn of your hollow bones
riding you on air that is redolent with spores
after the fact of your scavenged heart,
the stolen tissues of your wings.


Fiona Benson
in Faber New Poets 1

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O de "O mundo está escuro: ilumina-o" (XVI)

LÍRICA DE PARDILHÓ


Então acordo e sinto a meu lado
o esplendor tranquilo
da amada que respira
adormecida deitada sobre o flanco
vertendo a prata dum sorriso

nas ravinas da noite
esferas cantam a alegria
é um sítio de grama rociada

e passam horas
durante as que da rua
ouvindo vozes turvas
eu ficarei teimando
na claridade a todo o preço

de que me falam as aves


- Fernando Assis Pacheco

L de Ler (V)

Ouve-se na página 43 deste livro:
Christian Charrière, Dites-le avec des fleurs, Paris: Fayard, 1969

L de (A) Luz da Sombra (IX)



Ontem, a caminho da minha livraria preferida.

 



P de (Os) Pássaros em Volta (VIII)

Hoje contemplei Sujata a beber chá em frente do jardim
de Pangim com gestos de pomba escura até à alva
e a ossatura de platina fluorescente, a cabeleira
fulminada numa pose que o vento ventilava fulva

Sujata sorriu como de costume no romance por escrever
que eu jamais escreverei (a acção não se desenrola)
e o poema nu também não há: havia, há, haverá uma veia
aberta de onde emergem as linhas de uma epopeia em transe

Nessa polpa amarga me situo e o sumo do fruto escorre
aos cantos do luto, não dos lábios, aos cantos do palácio
andorinha fugitiva que ri com a boca toda numa rosa

Voltavam as asas, voltavam, as inúmeras espécies de voo
estudadas inculcavam o cubo: voltavam as aves, voltavam
com romãs no bico e cada uma com um verso, todas as manhãs


Naga Masjid/Curti
Monção de 1982


- António Barahona
in Livros da Índia, Imprensa Nacional

[Encontrado aqui, como sempre]

quarta-feira, 22 de junho de 2011

P de (Os) Pássaros em Volta (VII)



[Obrigada, Ana.
É bom quando os arquivos das pessoas se cruzam]

T de Tratado de Pedagogia (XXXIV)

Em dia de exame nacional de Matemática:


MATHS


To commemorate the grand bazaar
the king is given a prize goat (x)
that is one and a half metres high.
Given that a prize goat eats
ten square yards of grass a day,
how long should the leash (y)
be tied so the prize goat can roam free
and feed until the next grand bazaar?

To the man who can give an answer
in yards and show his working,
goes the talcum hand of the virgin princess
who is also one and a half metres high.

Men come. One brings a ball of string
and a cauliflower to show he is both wise
and humble, another swings a bag of seeds,
two brothers flex their matching red braces.

So the suitors measure, scribble, compare
their feats of mind, strenght and faith.
Bunting feathers the eaves, a local man
juggles numbers through the streets
dressed in the fleece and horns of a buck.
The princess bites her lip, her hair plaited
with ribbons the colours of her country.
Meanwhile the goat goes hungry.


Jack Underwood

terça-feira, 21 de junho de 2011

B de Biorritmo (XCVI)


[Obrigada, Rui]

P de (Os) Pássaros em Volta (VI)



[Obrigada, Inês]

segunda-feira, 20 de junho de 2011

R de Realizar? (III)

THEOLOGY


He tried to think about the zoo,
the bird he'd seen with an anvil head,
slinking lizards in the reptile house.
It had been a good day.

But he remembered the panther enclosure
where he had waited for thirty minutes,
staring up at a dark hut hidden in the trees.
Suppose there was no panther.


- Jack Underwood
in Faber New Poets 4

R de Realizar (II)

E de Espera (XVI)

APELO DE URGÊNCIA



De Rutland Sq., Boston, Massachussets, mandaste as boas-festas.
Depois, vi-te em Bruxelas, na Grand'Place, mas nada foi possível,
porque conduzias uma excursão turística
e o autocarro
ia partir, na hora.

Em Ruão, encontrámo-nos, na Rue de L'Horloge.
E em Paris, na esplanada de um café, em Saint André-des-Arts.
Mas nada dissemos um ao outro
porque tivemos medo de que nenhum de nós fosse um ou o outro.

Em Ottignies, nevava,
vi passar o teu rosto colado ao vidro da carruagem de
segunda classe da composição
da linha do outro lado.
Eu ia para Gent.
E tu?
Direction Liège?

De então para cá, tenho-te visto, juro,
atravessando uma rua qualquer de uma qualquer cidade
de qualquer documentário cinematográfico
ou, súbito, ao passar,
numa qualquer fotografia de jornal.

Entretanto,
este breve postal de Tientsin :
"From China, with love".

E não assinas Laura,
não te chamas Beatriz
nem Annabelle Lee.

Sei, porém, o teu nome e o teu corpo,
mas não sei onde moras
(quem o sabe?).

E por isso te peço que, se um dia
(extremamente improvável)
este apelo de urgência
chegar às tuas mãos,
cair sob os teus olhos,
tombar no teu coração,
então que escrevas, escrevas logo, prontamente,
dizendo o teu país,
a tua cidade,
a tua morada.

Porque eu voltarei a cobrir a cabeça de cinzas,
calçarei as sandálias,
tomarei de novo o meu bastão de buxo,
abraçarei os parentes e os amigos
e partirei à procura
do infinitamente inefável.


- Emanuel Félix

O de "O mundo está escuro: ilumina-o" (XV)


Construção da Estátua da Liberdade
[Albert Fernique, Paris, 1883]

R de Realizar

AGORA ESCREVO



Que queriam fazer de mim?


Uma palavra, um gemido obsceno,
Uma noite sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida, resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos, o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim de semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas, no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo – o mar…

Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te, meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade? Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionámos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor,
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir,
Olhos já sem angústia, sem esperança, sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como o carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir (oh que vergonha!...)
Com a gente «ordinária», e calados
Descemos até ao rio – e ali ficámos
A ver!

O amor continua muito alto,
Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil: maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia,
Paciente e natural em cada dia,
Profundo e ao mesmo tempo aéreo,
Verde e simples,
Como uma árvore!

Ganhámos juntos o que perdemos separados:
A luz incomparável, esta luz quase louca
Da primavera, esta gaivota
Caída dos ombros da luz,
E a leve, saborosa tristeza do entardecer,
Como uma carta por abrir,
Uma palavra por dizer…

Ganhámos juntos o que vamos perdendo
Separados:
A alegria – inocente
Cidade,
Coração aberto pela manhã,
Pequeno barco subindo
Nitidamente o rio,
Fumegando, fumando
Com o seu ar importante de homenzinho…
E a ternura – beijo sobrevoando
O teu rosto fiel,
Fogo intensamente verde sobre a terra,
Intensamente verde nos teus olhos,
Pequeno «nariz ordinário»
Que entre os meus dedos protesta
E se debate…

Duas árvores de avanço,
Uma corrida louca…
… E o teu coração na minha boca!

E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza, a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!

Ganhámos juntos o que perdemos separados.

Flechas velocíssimas,
Nossos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar!

Nos nossos sonhos entrava gente viva,
Entravam cartas, poemas, versos
Tão cheios de sentido como ruas
E ruas plenas de ritmo e sentido,
Como os melhores versos,
Entravam amigos, desejos, lutas
E esperanças comuns.
Recordações, amores antigos
Como navios perdidos muito ao longe
Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio,
Leituras discutidas, evocadas: sonhos
E destinos próximos, tristezas e alegrias semelhantes,
Vidas exemplares,
Vidas fulgurantes de vida!

Michaux, o que dizia
A cada passo: «Et comment!»
Para exprimir o seu apago à vida,
A sua indomável alegria!
E N-2 e Berta,
Um ao outro presos
Como fantasmas,
Mas vivendo e ajudando a viver!
E Éluard, os seus poemas
Simples como gestos de alegria,
Directos como palavras
De justa cólera,
Irreprimíveis como beijos
Quentes de ternura,
Completos como pássaros
Rápidos no azul!
E muitos outros ainda,
Muitas outras vidas,
Reais ou inventadas
Exemplarmente do real!

Nos nossos dias entravam dúvidas e erros,
A terrível solidão de certas horas
Sem um ombro amigo,
O coração abandonado, flutuando
Como um peixe morto, um resto
De calor dentro do frio.
Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar «em obras», de instalar
Em cada dia um «problema»
E de dourar
O «problema» de cada dia…

Mas não só a dúvida e o erro,
O coração entornado, a cabeça perdida
Entravam nos nossos dias.
Porém
Tratava-se de realizar.

«Realizar»: fazer passar
Para a realidade,
Pôr em prática sonhos,
Ideias, teorias.
Por exemplo: a indústria,
A agricultura realizam
Certas teorias
Químicas, físicas,
Biológicas.
Por exemplo: hoje
Estão a ser realizados
Os mais velhos
Sonhos do homem.
Por exemplo – mais pessoal
Mas não menos importante:
Em ti
Via realizados os meus sonhos!


- Alexandre O'Neill
relido em:
Surrealismo/Abjeccionismo, org. Mário Cesariny de Vasconcelos, Lisboa: Edições Salamandra, 1992

domingo, 19 de junho de 2011

F de Flor Suficiente (VI)



O sol do entardecer visto por uma papoila
[15/06/2011]

sábado, 18 de junho de 2011

T de "Toda a poesia do século XX"

SABEDORIA


Nos dias em que nada vale a pena,
E em que as árvores amigas
São iguais e estão vistas,
A vida é tão parada e tão serena
Que afinal já não há que contar mais,
E prevejo, com olhos anormais,
As coisas imprevistas...
Nos dias em que são cinzentos os meus céus
— O de dentro e o de fora —
E é vaga esta noção de um velho Deus,
Que me não manda embora
Deste espectáculo estafado
Em que de cor sei dizer
O que me foi ensaiado
E o que todos vão fazer,
Tenho inveja dos homens convencidos
Que nem sequer sonharam
Que poderia haver paraísos perdidos,
Ainda não decifraram
Esta charada em que andam envolvidos,
E pensam que, vivendo, triunfaram
Da Vida em que os que sonham são vencidos.


Francisco Bugalho
(1905-1949)

R de (O) rio da minha aldeia (V)

     "Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso, e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos.
     No fundo de um largo vale aprazível e sereno, está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. Dalém do rio, com os pés no pingue nateiro daquelas terras aluviais, os ricos olivedos de Alpiarça e Almeirim; depois a vila de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. Daquém a imensa planície dita do Rossio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores silvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o pitoresco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas igrejas, tão graciosas vistas daqui, a sua cruz de Santa Iria e as memórias romanescas do seu alfageme.
     Com os olhos vagando por este quadro imenso e formosíssimo, a imaginação tomava-me asas e fugia pelo vago infinito das regiões ideais. Recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o género me afluíam ao espírito, e me tinham como num sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se sucedem umas às outras.”

 
(Re)lido aqui:
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
 
(Re)visto e fotografado

B de Beware (II)


Para um menino de 7 anos,
a quem falei destas cegonhas.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

quinta-feira, 16 de junho de 2011

F de Fazer Fotografia - LIII b


Simão Dórdio Gomes, "Casa de Malakoff", 1923

[Obrigada, João Luís]


P de (Os) Pássaros em Volta (V)


Thomas Hoepker,
"An old man with his pet bird in Ritan Park, Beijing", 1984

quarta-feira, 15 de junho de 2011

B de Biorritmo (XCIV) - em dia de eclipse




[...]
I want to build
A nest in your hair
I want to kiss you
And never be there
[...]

J de (O) Jardim e a Casa (IX)




Uma trepadeira no Jardim do Torel,
12/06/2011

P de Poética

Eu falei da tua morte. Da ave
que levantou a palavra
morte, injusta e funesta no
seu ser. Da tua morte falo.

Do meu discurso nenhum sábio
saberá admitir a unidade, o
tempo infinito formando verão
e mar, o longo nome de ti.

Fim ou movimento? Toda a
unidade será sempre uma
ausência e um excesso.

Sobre os lábios do homem a
única duração da vida é razão
de um silêncio ou de uma rosa?


- João Miguel Fernandes Jorge, Sob Sobre Voz (1971)

E de Espera (XV)


Georges Méliès, 1901

[Obrigada, Daniela]


H de Humanidade (III)

Começa assim “O Lavra”:



     O elevador estava parado. Entrei eu nele e entraram outros, pouca gente. Ainda não era ou talvez já tivesse passado a hora da saída dos funcionários e o Torel naquele momento também dava um pequeno, quase nulo contingente de passageiros.
     Fazia sol e havia tranquilidade.
     Como é que o diabo de um gato se havia de meter debaixo do enorme elevador, já depois do homem das máquinas ter dado o seu toque nas rodas?
     O gato vai morrer pensámos nós e olhámos suponho que com vergonha uns para os outros.
     O elevador devia ficar parado! dar o alarme ao outro que ia subir!
     No entanto não parou. O guarda-freio e o condutor eram escravos da casa das máquinas que punha o elevador em movimento; consideraram uma fatalidade o gato morrer e não tiveram uma ideia nem um gesto para o impedir. Que é que os passageiros podiam fazer? Dar um grito? Seria tremendo, e quem o ousaria?
     Cobarde! chamava-me eu sem coragem ouvindo a seguir os miados terríveis, raivosos ou dilacerantes do gato. Enquanto o gato berrou, o que durou pouco mas ainda assim bastante para cada um se poder acusar de seu matador, havia um mau-estar disfarçado nos passageiros. Ficaram à espera.
     O condutor, alto e gordo, uma cara agradável que se via todos os dias, mostrava uma compaixão discreta pelo animal: aquilo dura pouco… já tem acontecido… ficou entalado.
     E durou.
     Mas a surpresa, a dor, a violência de que o pobre gato foi vítima ficaram ecoando. Quem se subtraía a senti-las em si, na sua consciência, nos seus nervos, onde quer que fosse?
     Teria o gato girado com a roda?
     Dados aquele poucos miados terríveis calou-se.
     Na cara do condutor transparecia então a inteligência do caso, queria ele explicar: eu não lhes dizia?
     E lá ficou no seu posto. Nós saímos necessariamente aliviados.
     Subir e descer neste veículo em cada dia ao ano é cumprir uma pequena e ordinária rota, a pino, que sem exagero se pode considerar tão edificante cómoda dar largas voltas pelo mundo.
     Naquele dia tinha morrido o gato, noutros tudo se apresentaria banal, noutros voltariam os factos extraordinários.
     […]


Irene Lisboa, Esta Cidade!, Lisboa: ed. da autora, 1942

terça-feira, 14 de junho de 2011

M de Música para os meus olhos (XIV) *




* E outra maneira também de ler Holderlin.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

S de Santos Populares (II)

Afinal, ou o amor é daltónico ou então pouco firme...

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXVII

se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida...

... sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras...
... porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
... mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo...

... mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição


- Al Berto (1948 - 13 de Junho de 1997)

L de Lisbon Revisited


Ontem, antes de acender três velas.

S de Self (II)

Trinta e quatro anos. E há quatro que não escrevia nada. Começara duas novelas, esboçara alguns contos, mas nunca se sentira a arder. E chegara a um ponto em que já não tinha muita importância, o trabalho no bar impedia-a de se desligar por completo do mundo exterior, e ganhava o suficiente para pagar a renda, alugar dvds e comprar livros policiais e infantis nos alfarrabistas. Estava numa das suas fases ascéticas, e comia pouco, dormia pouco, e não sentia a falta de sair com amigos ou fazer amor com alguém.

- Ana Teresa Pereira, A Pantera, Lisboa: Relógio D'Água, 2011

domingo, 12 de junho de 2011

M de Museu Imaginário b

Também fazia anos hoje:

K de Kissing the sun



Para um menino que festeja hoje o seu aniversário:
que o seu caminho tenha sempre sol e pássaros e amigos.

sábado, 11 de junho de 2011

Anjos Caídos (II)

Anjos Tardios
(Poema do Ciclo Primeiro)


São anjos de metal, estendidos no outro lado
do mar, com a pele encostada a um navio.
Anjos inclinados para a madeira, presos a uma
corda, sabendo que o céu se abre para eles como
uma forca. Uma grande luz vem dos penhascos,
traz essas mulheres no seu dorso, esmagadas pelo
olhar. Uma sirene cruza o nevoeiro. É de novo a
morte, a última tentação da carne, o grande vestido
deposto sobre um estrado. Outro anjo nasce
fulminando a beleza do dia. Tem uma voz, um rosto,
uma oficina. É um cântico tardio, uma desordem,
uma paixão que se esvai triturada por uma súbita fraga.


Jaime Rocha
in P2/Público, 11 de Junho de 2011

M de Música para os meus olhos (XIII)

sexta-feira, 10 de junho de 2011

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXVI


 
Lisboa, último dia de aulas

L de (A) Luz da Sombra (VIII)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

J de Janelas III


Édouard Boubat, 1970

[Via Joana Jacinto]

quarta-feira, 8 de junho de 2011

E de Estar (IV)


Izis Bidermanas, "Sur les quais de la Seine", 1949

L de (A) Luz da Sombra VII b


Odilon Redon
[1840-1916]

terça-feira, 7 de junho de 2011

B de Biorritmo (XCIII)

Ouve-se agora, na melhor companhia:

D de "Dust Motes Dancing in the Sunbeams" *


* Esta luz é de Lisboa (Príncipe Real).
O título é de um quadro de Vilhelm Hammershøi.

F de "(Une) Famille d'Arbres"

Comprei em 5ª edição (50 exemplares) e ainda não me cansei de passear por lá:


segunda-feira, 6 de junho de 2011

P de (Os) Pássaros em Volta (III)

ELEGIA


Quando a manhã rasgou o coração do poeta
voavam pássaros dos teus ombros
e o tempo era uma laranja azul
rolando nos teus dedos meninos

Quando a manhã rasgou o coração do poeta
colhias no jardim os versos puros
da primeira canção

Quando a tarde chegou ao coração do poeta
com flores breves e conchas
desenhavas
nas horas quase brancas
teu caminho de abelha

Ah mas o sol morreu no coração do poeta
e uma andorinha tristemente vem
com um ramo de vento
pairar a tua ausência


- Emanuel Félix, 121 Poemas Escolhidos (2003)

L de (A) Luz da Sombra (VII)

Vigo 2011

domingo, 5 de junho de 2011

C de Crise

Finalmente, alguém realista:


[Sintra, Maio 2011]


S de Solidão (ou C de Comunidade) XXV

CANTAR DE AMIGO, PARTINDO-SE


E mais não digo, amigos. Do que sou
não vos oculto o orvalho,
o nocturno silêncio das baías,
o acender de luzes das cidades,
um balouçar de ramos (subtil peso)
ao primeiro pássaro da manhã.

Não vos digo bom-dia, malmequer
água, vento, qualquer retrato puro
à beira de um jardim
na margem deste lago
que um silêncio de espelho fez tão duro,
só em redor de mim.

Nada repito. Nada que recorde
uma viagem, um beijo, uma canção
que lembre o mar (tão longe!) como se fora
mais uma história, tímida, inventada
p'ra nos deter por toda a noite fora
neste cálido sonho de acordados


Paris, Novembro de 1980



EMANUEL FÉLIX
in 121 Poemas Escolhidos, Lisboa: Edições Salamandra, 2003

B de Biorritmo (XCII)

Ouviu-se - e sobretudo dansou-se (assim mesmo, com s) - ontem à noite:

sábado, 4 de junho de 2011

P de (The) Privacy of Rain (XIII)

Termina assim um poema de E. E. Cummings:


(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain, has such small hands

T de Tratado de Pedagogia (XXXIII)

P de (Os) Pássaros em Volta (II)

POEMA PARA UM PÁSSARO QUE O LUIS MANUEL GASPAR NÃO PINTOU


Morreu-me entre as duas mãos o pássaro
vadio, era o meu peixe azul num aquário,
o fanatismo de ser de um clube, o meu ídolo
com as suas pequenas patas de barro.
Visitava-me muitas vezes, cheguei a crer
que era mais do que um, mas não, era
sempre o mesmo, o meu pássaro com asas
de um negro radioso, talvez não fosse negro,
talvez fosse às riscas, mas o bico, esse
era amarelo torrado e nunca há-de haver outro
como ele. Não lhe dei de comer, porque ele
não precisava, ele desenvencilhou-se sozinho,
acompanhou-me na velhice dos dois sem nada
exigir e agora, de asas caídas e patas trémulas,
veio morrer às minhas mãos o meu amigo.


Helder Moura Pereira

in Luis Manuel Gaspar, Um Lugar nos Olhos, catálogo, Associação de produção e animação audiviosual Ao Norte, 2011

sexta-feira, 3 de junho de 2011

R de Regresso ao trabalho (XIV)

[...] Na mobilização geral pelo traba­lho, reforça-se uma evidência que seria, pelo contrário, necessário abolir: a de que não há outra maneira de existir senão trabalhando. De tal modo que trabalhar, hoje, corresponde menos a uma necessidade económica de produ­zir mercadorias do que a uma necessi­dade política de produzir produtores e consumidores. A produção tornou-se sem objeto. A figura de Bartleby, o escrivão de Melville que respondia às ordens para trabalhar com a fórmula "I would prefer not to", poderia servir de inspiração para desativar o sistema laborioso que suscita tanta mobilização: dos que o defendem para que nada se passe e dos que o atacam por ele se ter tornado tão exclusivo. E se, em vez da mobilização total com a qual se glorifi­ca o trabalhador, que foi uma figura tanto do fascismo como do comunismo, o novo exército de não-trabalhadores recusasse assumir-se como multidão de desempregados e em vez de reivindicar o impossível gritasse em todas as pra­ças "I would prefer not to"?
António Guerreiro, Expresso, 3 de Junho de 2011

P de (Os) Pássaros em Volta


"Take a stand" -
Príncipe Real, 1 de Junho

quinta-feira, 2 de junho de 2011

E de (Dia da) Espiga (II)

13/05/2010

B de Biorritmo (XCI)




[...]
Tu ne sais même pas
Sortant de mon cimetière
Que tu entres en ton enfer
[...]

V de Vento (II)


 No Rossio, ontem:




 "Sometimes there's so much beauty in the world..."
(ouvido num filme)

 

quarta-feira, 1 de junho de 2011