quarta-feira, 15 de junho de 2011

H de Humanidade (III)

Começa assim “O Lavra”:



     O elevador estava parado. Entrei eu nele e entraram outros, pouca gente. Ainda não era ou talvez já tivesse passado a hora da saída dos funcionários e o Torel naquele momento também dava um pequeno, quase nulo contingente de passageiros.
     Fazia sol e havia tranquilidade.
     Como é que o diabo de um gato se havia de meter debaixo do enorme elevador, já depois do homem das máquinas ter dado o seu toque nas rodas?
     O gato vai morrer pensámos nós e olhámos suponho que com vergonha uns para os outros.
     O elevador devia ficar parado! dar o alarme ao outro que ia subir!
     No entanto não parou. O guarda-freio e o condutor eram escravos da casa das máquinas que punha o elevador em movimento; consideraram uma fatalidade o gato morrer e não tiveram uma ideia nem um gesto para o impedir. Que é que os passageiros podiam fazer? Dar um grito? Seria tremendo, e quem o ousaria?
     Cobarde! chamava-me eu sem coragem ouvindo a seguir os miados terríveis, raivosos ou dilacerantes do gato. Enquanto o gato berrou, o que durou pouco mas ainda assim bastante para cada um se poder acusar de seu matador, havia um mau-estar disfarçado nos passageiros. Ficaram à espera.
     O condutor, alto e gordo, uma cara agradável que se via todos os dias, mostrava uma compaixão discreta pelo animal: aquilo dura pouco… já tem acontecido… ficou entalado.
     E durou.
     Mas a surpresa, a dor, a violência de que o pobre gato foi vítima ficaram ecoando. Quem se subtraía a senti-las em si, na sua consciência, nos seus nervos, onde quer que fosse?
     Teria o gato girado com a roda?
     Dados aquele poucos miados terríveis calou-se.
     Na cara do condutor transparecia então a inteligência do caso, queria ele explicar: eu não lhes dizia?
     E lá ficou no seu posto. Nós saímos necessariamente aliviados.
     Subir e descer neste veículo em cada dia ao ano é cumprir uma pequena e ordinária rota, a pino, que sem exagero se pode considerar tão edificante cómoda dar largas voltas pelo mundo.
     Naquele dia tinha morrido o gato, noutros tudo se apresentaria banal, noutros voltariam os factos extraordinários.
     […]


Irene Lisboa, Esta Cidade!, Lisboa: ed. da autora, 1942

1 comentário:

luis manuel gaspar disse...

nãããããããão!!!

(gatinho à parte, irene lisboa para sempre)