JOÃO E MARIA
O Alentejo não tem caroço, nem casca,
não tem paredes nem teto; certa vez
um velho deixou suas memórias sobre a mesa
todas queimaram, porque os fantasmas lá
não resistem à luz que se lança de altas espigas
para o pátio onde cada faísca risca e dança
entre sobreiros junhos girassóis e dura
mesmo noite adentro. Sente o cheiro
da madeira queimada? São fantasmas, nada.
O mundo é pequeno, o Alentejo é imenso
e lá estava o homem depois de todas as viagens
sem poder dizer de si mesmo algo como:
o dono e seu retorno. Afinal, onde a casa
o relógio a mulher o cachorro o nome?
O retrato da Virgem a lâmpada a cama onde?
Desdobra-se o horizonte em céus em dunas
de poeira em túnicas no vento em fios
e não há nunca filhos ou amigos ou espelho.
Que lugar a cidade a fidelidade urdindo
desfazendo e outra vez os anéis sem fim
da espera? Indaga os livros os mortos
até que as areias do mar, do mar que
parecia distante,
lentamente - não, de repente - cobrem-lhe
a voz e o tempo. O mundo
é pequeno, o Alentejo é imenso.
Eucanaã Ferraz
in Relâmpago n.º31-32,
Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, 2013
1 comentário:
"Afinal, onde a casa / o relógio a mulher o cachorro o nome?" Ah.
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