Para Abel de Freitas
Faz hoje um ano que o vi pela última vez vivo. Vivo… sem mexer praticamente o corpo, alimentado à força, de olhos teimosamente fechados e rito de dor. Mas procurou-me a mão, apertou-a, com a força possível, e há algo de dolorosamente consolador em saber ainda de cor esta data, como se lembrá-lo me protegesse, por sua vez, do esquecimento dos outros.
Durante uma semana, aprendemos os horários dos comboios, qual o lado da sombra – que nem sempre coincidia com o do rio –, as horas das visitas, os corredores mais suaves. Nem era tanto esperança, apenas a liberdade que vinha de estarmos por enquanto entre a vida e a morte, entre uma cidade e outra, entre a resistência e a aceitação – a tal viagem libertadora entre a cadeia e o tribunal onde se ouvirá a sentença, que repeti tantas vezes nas minhas viagens e citei nos meus textos.
E, tirando a camisa escura que comprei na manhã seguinte para o funeral e que nunca mais consegui usar por me lembrar uma mortalha, as imagens dessa semana são inesperadamente luminosas. O primeiro pássaro que fotografei a voar. A caixa de música à entrada do hospital. A coragem de esperar. O azul das últimas flores que ele olhara. O descer as escadas ao fim da noite mais comprida e ter alguém à espera para procurar comigo os ciprestes perdidos na cidade.
Claro que o buraco no coração aumenta. É mais um que faltará doravante à chamada e já passou um ano inteiro de ausência. Um ano de gatos que nasceram e desapareceram, de árvores que caíram, de casas vendidas e ilhas cada vez mais distantes. Um ano que não bastou para lhe descobrir ondas suficientemente belas para a eternidade. E escrevem-se relatórios que nunca poderão levar selo branco, nem caber em poemas, mas que nos ajudam a ganhar balanço para mais um ano em que todos os cães nos lembram o pelo morno da Rebeca já morta, em que nadaremos sempre mais sozinhos, em que teremos medo pelo que ainda nos resta perder. Os pais nunca nos deveriam morrer, insiste o meu coração egoísta. Se lhes sobreviver, quem estará ao meu lado quando ficar doente outra vez? Quem se sentirá tão mortal e sozinho como eu? Quem parará de viver comigo, em vez de me relembrar que o mundo continua lá fora, sem mim? Quem me exigirá que seja melhor, mesmo que esse melhor se resuma a sobreviver?
Mas um gato de olhos verdes vigia-nos a solidão, nunca nos deixando ficar demasiado tempo do lado oposto da casa. Os amigos vão chegando e tentando preencher o buraco no nosso coração. Não nos deixam descansar enquanto não o pusermos de novo a funcionar, por muito que doa ao princípio respirar e tudo pareça sal sobre uma ferida aberta sobre outra ferida ainda. Aprende-se, aos poucos, a brincar com a crosta da ferida, a utilizar o espaço vazio para acolher mais pessoas, mais sentidos. Crescemos, mesmo com o nosso coração esburacado, como Michaux nos explicou. E, entre todos, talvez consigamos reconstruir um coração inteiro, partilhável, que ajude a sobreviver ao ritmo certo. A noite fica para trás; é tão precioso ver a manhã a nascer ao fundo da estrada e ir ao seu encontro, sem ter verdadeiramente pressa de chegar.
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4 comentários:
Lindo, Inês. Lindo.
Patrícia B.
Lindo.
Beijo,
MM
Tão tão bonito...mesmo.
Bjo
É bom ouvir-te. Faz bem.
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