PERDA DE INVENTÁRIO
Sempre à mesma hora
a morte, e não lhe fixei
ainda o negro subindo
de veludo pela sombra,
pisando a carne.
Talvez alguns sinais:
um céu indigesto,
os pés disformes de todos
os anjos para não saberem
regressar à terra;
a estátua mais triste
da cidade, tão triste
que a avenida parece
prometer, ao fundo,
um circo já desfeito.
Só um mendigo lhe
deixou o seu corpo
por reclamar - o corpo
mais anónimo da cidade -
sob a espera de lona molhada
e o embalo surdo de um Bach
de papelão e cobre miúdo
para solista sem pernas,
esquecido entretanto de
como regressar à alegria.
Nada pousa, em horas assim,
o suficiente para ser,
por mais que insistamos
em atravessar contra-corrente
as ondas quebradas na calçada,
os sentidos trocados da vida.
E sente-se a amargura,
mesmo de costas voltadas,
como o brilho de uma pérola por
entre as malhas indiferentes da luva.
Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014
[Lisboa, 25/11/12]
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