segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

C de Cidades Invisíveis


CHÃO ANTIGO


para o António Manuel Couto Viana


É pena que já não existam
esses lugares imundos – puros, quero eu
dizer – onde a morte entrava
sem ter de pedir licença.
Lugares onde eram por igual sinceros
o sono, o vómito ou a sombra de um abraço
(Mayakovsky e Céline tinham a mesma importância
e a sorte de não serem futebolistas).

É pena que já não possamos
comemorar no chão a derrota
do corpo pela manhã. Ao lavarem
os copos, da última vez, houve duas
ou três gerações que se partiram.
Talvez eu pertencesse a uma delas – mas
isso, ao poema, importa muito pouco.

Há um lugar que escreve sobre
a ausência de todos os lugares.
Tonéis de vários tamanhos
onde inscrevi, por distracção,
o único nome verdadeiro.
Estou a falar, naturalmente,
de tabernas.

Mas talvez não seja apenas isso.


Manuel de Freitas, A Flor dos Terramotos,
com capa de Olímpio Ferreira a partir de fotografia de Sérgio Eloy,
Lisboa: Averno, 2005




[ID, 'Cidades invisíveis', 06/013]

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