III
Isto ocorre-me a partir desta observação: nós ainda pintamos os homens sobre fundo dourado, como os primitivos. Detêm-se frente ao indeterminado. Por vezes dourado, por vezes cinza. Às vezes dentro da luz e, muitas vezes, por trás deles, com uma insondável escuridão.
Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011
AMOR
O rapaz na extremidade da carruagem
não parava de olhar para trás
como se estivesse com medo ou à espera de alguém
e, em seguida, ela apareceu na porta de vidro
da carruagem seguinte e ele levantou-se,
abriu a porta e deixou-a entrar
e ela entrou na carruagem levando consigo
uma grande caixa preta
na forma inconfundível de um violoncelo.
Ela parecia um anjo com uma testa alta
e olhos sombrios e os cabelos
estavam presos atrás do pescoço com um laço preto.
E por causa de tudo isso,
ele parecia um pouco estranho
na sua felicidade em vê-la,
enquanto ela estava simplesmente ali,
perfeitamente viva como uma criatura
com um rosto suave que tocava violoncelo.
E a razão pela qual estou a escrever isto
na parte de trás de um envelope
agora que eles deixaram o comboio juntos
é dizer-vos que, quando ela se virou
para colocar o grande e delicado violoncelo
na bagageira superior,
vi-o a olhar para ela
e para o que ela estava a fazer
da mesma forma que os olhos dos santos são pintados
quando estão a olhar para Deus
quando ele está a fazer algo de extraordinário,
algo que o identifica como Deus.
Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014
[Imagem: Giotto]
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