terça-feira, 30 de dezembro de 2014

P de Perda de Inventário



[ID, Santarém, 26 de Dezembro de 2014]



AS CADEIRAS EM QUE NINGUÉM SE SENTA


Vêem-se em varandas e em relvados
mesmo à beira do lago,
geralmente dispostas em pares indicando que um casal

se poderá sentar ali e olhar para
a água ou para as grandes árvores frondosas.
O problema é que nunca se vê ninguém

sentado nessas cadeiras abandonadas
embora a dada altura deva ter parecido
um bom lugar para parar e não fazer nada por um momento.

Às vezes há uma pequena mesa
entre as cadeiras onde ninguém
deixou um copo pousado ou um livro com a capa para baixo.

Posso não ter nada com isso,
mas suponhamos haver um dia
em que todos os que colocaram essas cadeiras vagas

numa varanda ou num cais se sentariam nelas
nem que fosse para se lembrarem
daquilo que achavam que valia a pena

ser contemplado das duas cadeiras
lado a lado com uma mesa pelo meio.
As nuvens estariam altas e imponentes nesse dia.

A mulher descola o olhar do seu livro.
O homem toma um gole da sua bebida.
E ouve-se apenas o som do seu olhar,

o marulhar da água do lago, e o canto de um pássaro
depois de outro, gritos de alegria ou de aflição —
o tempo vai passando enquanto se percebe qual.


Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014





sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

E de Encontro


2.


para a Inês


Encontraram-se
à margem dos seus deslocamentos,
duas figuras capazes de existir e morrer.
Ali,
somados ao lugar que os inventou,
foram peremptórios em reconhecer
a falência da realidade, o que só os tornou
ainda mais coesos.
Sobrepunham-se de tal forma
que os trâmites da experiência se viam instituídos
pelos seus próprios olhos.
Um tocou o outro,
a sensação de se propagarem como
âncoras debaixo de água. Tudo assim lento,
confirmado pela respiração.
Se ainda houvesse ruas,
julgaríamos que era de noite,
que chuviscava,
que tinham roupa um para o outro.
Sentiam-se emergir de um equívoco, alçados
pelo lucro do desejo.
Cruzariam a própria sombra para jurarem isso mesmo:
que existiam, que haveriam de morrer.
Que se tinham encontrado.


 
Vasco Gato, Napule,
Lisboa: Tea For One, 2011

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

C de Cidades Invisíveis


CHÃO ANTIGO


para o António Manuel Couto Viana


É pena que já não existam
esses lugares imundos – puros, quero eu
dizer – onde a morte entrava
sem ter de pedir licença.
Lugares onde eram por igual sinceros
o sono, o vómito ou a sombra de um abraço
(Mayakovsky e Céline tinham a mesma importância
e a sorte de não serem futebolistas).

É pena que já não possamos
comemorar no chão a derrota
do corpo pela manhã. Ao lavarem
os copos, da última vez, houve duas
ou três gerações que se partiram.
Talvez eu pertencesse a uma delas – mas
isso, ao poema, importa muito pouco.

Há um lugar que escreve sobre
a ausência de todos os lugares.
Tonéis de vários tamanhos
onde inscrevi, por distracção,
o único nome verdadeiro.
Estou a falar, naturalmente,
de tabernas.

Mas talvez não seja apenas isso.


Manuel de Freitas, A Flor dos Terramotos,
com capa de Olímpio Ferreira a partir de fotografia de Sérgio Eloy,
Lisboa: Averno, 2005




[ID, 'Cidades invisíveis', 06/013]

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

E de Espera (XXXIX)


POR MUITO QUE LEIAS NOVALIS


Ouro, incenso e mirra.
Por muito que leias Novalis
não vês tornar-se mais poética
nem mais verdadeira
a tua vida. No fundo,
só querias guardar ciosamente
(ias escrever religiosamente) a luz
que dezembro te oferece.

Ouro, incenso e mirra.
E certos direitos duramente conquistados.
O direito de impregnar na pele
a cólera das crianças,
o direito às cavidades irrevogáveis
da tua garganta,
o direito de estenderes na corda
a roupa viva dos dias,
e o de ensopares, na côdea,
os restos de gordura do prato,
escassos poderes, toda a luz
que dezembro te oferece.

Ouro, incenso e mirra
a luz que dezembro te oferece
começa logo a desaparecer.
E, por poucas que sejam, estarão sempre a mais
as palavras deste poema.


LUÍS FILIPE PARRADO
in Merry Little Christmas
Lisboa: Averno, 24 de Dezembro de 2012






[ID, 'a luz que dezembro te oferece', 12/014]

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

C de Carrosséis (V)



[ID, Feira Popular, 014]



CARROSSEL


Não enxergas. Quer dizer, olhas para isto e não vês
nada. Em rigor a manhã só desperta com o gesto
de um miúdo. Estender o braço e fazer pontaria.
Há quanto tempo está ali, a observar-te?

À volta de toda a praça, o grande carrossel gira,
o grande ciclo da vida, a morte e o renascimento.
Vozes desconhecidas ecoam por todo o lado, palavras
que se transmitem de uma geração para outra.

Pois bem, o balanço do mar largo continua.
Não te deixes enganar pela harmonia da calçada.
Hoje é dia das mentiras, és capaz de ter razão.


Vítor Nogueira, Mar Largo,
Lisboa: &etc, 2009

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

J de "Jardins sous la pluie" (III)





SONETO PARA CESÁRIO


Se te encontrasse, agora, na paisagem 
nocturna dos fantasmas da cidade, 
contava-te dos nossos pobres versos 
no teu rasto de sombra e claridade. 

Contava-te do frio que há em medir 
a distância entre as mãos e as estrelas, 
com lágrimas de pedra nos sapatos 
e um cansaço impossível de escondê-las. 

Contava-te — sei lá! — desta rotina 
de embalarmos a morte nas paredes, 
de tecermos o destino nas valetas... 

Duma história de luas e de esquinas, 
com retratos e flores da madrugada 
a boiarem na água das sarjetas. 


DINIS MACHADO





[ID, 'Pelos caminhos da manhã', 01/013]

E de Espera (XXVII) - 3.º Domingo de Advento



Humphrey Bogart e Lauren Bacall
[Delmer Daves, Dark Passage, 1947]

domingo, 14 de dezembro de 2014

M de "My house, I say" (III)





ANCORADOURO
  
Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um jardim com as cantarias
caídas e árvores altas e muros de musgo.
O burel das cortinas antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; termina
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.
JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
in Sloten, Lisboa: Europália, 1991




[ID, 'My house, I say', 03/014]

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O de "O mundo está escuro: ilumina-o." (XXVI)


"We are all in the gutter, 
but some of us are looking at the stars."

OSCAR WILDE



[Lisboa, 07/12/12]

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

E de "E ando na vida à procura / Duma noite menos escura" (V)


NOCTURNO


Meia-noite em Alicante. Da varanda do meu hotel da Calle Mayor, na estreita franja negra que formam, quase se tocando, as cornijas, avisto duas gaivotas que flutuam como farrapos de linho deslizando pelo firmamento.
Uma anémica estrela tirita, solitária e desgraçada, na abóbada do céu.
Pela rua passa um tipo escrevendo uma mensagem num telemóvel. Acabo o cigarro e entro no quarto. Junto da cama, um cartaz anuncia em inglês:
"Há algo melhor do que tornar realidade os seus sonhos. Tornar realidade os dos outros...".
A poesia no século XXI.


Roger Wolfe, Tiempos Muertos,
Barcelona: Huacanamo, 2009

[Trad. ID]




"[...]

Não sei. O amor prevalece. E tem,
como as palavras, uma espécie de evidência física.
Ontem - escrevo-o em Coimbra,
numa fria varanda de hotel - poderia ter sido 
uma das noites mais felizes da minha vida.

[...]"


Manuel de Freitas, Ubi Sunt,
Lisboa: Averno, 2014




[Fotografias: ID, Coimbra, 11/014]

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

C de Carrosséis (XV)


PERDA DE INVENTÁRIO


Sempre à mesma hora
a morte, e não lhe fixei
ainda o negro subindo
de veludo pela sombra,
pisando a carne.

Talvez alguns sinais:
um céu indigesto,
os pés disformes de todos 
os anjos para não saberem
regressar à terra;
a estátua mais triste
da cidade, tão triste
que a avenida parece
prometer, ao fundo, 
um circo já desfeito. 

Só um mendigo lhe
deixou o seu corpo
por reclamar - o corpo
mais anónimo da cidade - 
sob a espera de lona molhada
e o embalo surdo de um Bach
de papelão e cobre miúdo
para solista sem pernas,
esquecido entretanto de
como regressar à alegria. 

Nada pousa, em horas assim,
o suficiente para ser,
por mais que insistamos
em atravessar contra-corrente
as ondas quebradas na calçada,
os sentidos trocados da vida.
E sente-se a amargura,
mesmo de costas voltadas, 
como o brilho de uma pérola por
entre as malhas indiferentes da luva.


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014



[Lisboa, 25/11/12]

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

L de (A) Luz da Sombra (XLII)


III


Isto ocorre-me a partir desta observação: nós ainda pintamos os homens sobre fundo dourado, como os primitivos. Detêm-se frente ao indeterminado. Por vezes dourado, por vezes cinza. Às vezes dentro da luz e, muitas vezes, por trás deles, com uma insondável escuridão. 


Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011






AMOR


O rapaz na extremidade da carruagem
não parava de olhar para trás
como se estivesse com medo ou à espera de alguém

e, em seguida, ela apareceu na porta de vidro
da carruagem seguinte e ele levantou-se,
abriu a porta e deixou-a entrar

e ela entrou na carruagem levando consigo
uma grande caixa preta
na forma inconfundível de um violoncelo.

Ela parecia um anjo com uma testa alta
e olhos sombrios e os cabelos
estavam presos atrás do pescoço com um laço preto.

E por causa de tudo isso,
ele parecia um pouco estranho
na sua felicidade em vê-la,

enquanto ela estava simplesmente ali,
perfeitamente viva como uma criatura
com um rosto suave que tocava violoncelo.

E a razão pela qual estou a escrever isto
na parte de trás de um envelope
agora que eles deixaram o comboio juntos

é dizer-vos que, quando ela se virou
para colocar o grande e delicado violoncelo
na bagageira superior,

vi-o a olhar para ela
e para o que ela estava a fazer
da mesma forma que os olhos dos santos são pintados

quando estão a olhar para Deus
quando ele está a fazer algo de extraordinário,
algo que o identifica como Deus.


Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014

[Imagem: Giotto]

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

P de Poética (LIV)


 DIQUE


A minha mãe chama-me,
um som familiar, de duas notas,
que atravessa os campos
e me encontra aqui
de joelhos num regato,
os braços metidos em lama até aos cotovelos.

Regresso
e tento explicar
o que estive a fazer este tempo todo
tão longe de casa.
"A fazer diques?", vai ela perguntar.
"Ou a fazer poemas sobre fazer diques?"


Hugo Williams, Última Semana, 
trad. Pedro Mexia, 
Lisboa: Edições Tinta-da-china, 2014

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" - II c


AN ARUNDEL TOMB




Side by side, their faces blurred,
The earl and countess lie in stone,
Their proper habits vaguely shown
As jointed armour, stiffened pleat,
And that faint hint of the absurd—
The little dogs under their feet.

Such plainness of the pre-baroque  
Hardly involves the eye, until
It meets his left-hand gauntlet, still
Clasped empty in the other; and
One sees, with a sharp tender shock,
His hand withdrawn, holding her hand.

They would not think to lie so long.
Such faithfulness in effigy
Was just a detail friends would see:
A sculptor’s sweet commissioned grace
Thrown off in helping to prolong
The Latin names around the base.

They would not guess how early in
Their supine stationary voyage
The air would change to soundless damage,
Turn the old tenantry away;
How soon succeeding eyes begin
To look, not read. Rigidly they

Persisted, linked, through lengths and breadths
Of time. Snow fell, undated. Light
Each summer thronged the glass. A bright
Litter of birdcalls strewed the same
Bone-riddled ground. And up the paths
The endless altered people came,

Washing at their identity.
Now, helpless in the hollow of
An unarmorial age, a trough
Of smoke in slow suspended skeins
Above their scrap of history,
Only an attitude remains:

Time has transfigured them into
Untruth. The stone fidelity
They hardly meant has come to be
Their final blazon, and to prove
Our almost-instinct almost true:
What will survive of us is love.




PHILIP LARKIN
[Fotografias: ID, 03/013]

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" - II b


2


Gosto dos teus sinais pela minha casa. O livro de Caspar Friedrich com a capa voltada para cima. O afia-lápis apoiado na face menor como se a desafiar a queda, posição em que nunca imaginei se pudesse equilibrar. O brinco que perdeste e só encontraste o minúsculo fecho que teimei guardar, embora de nada servisse. Nele deponho a alegria de o vir a encontrar e lembrar estas noites de uma felicidade suave, quase invisível. Ficava-te bem esse brinco contra o cabelo curto. Ficava-te bem o sorriso abrigado nos olhos tristes. Toda a noite te falei da morte e tu ouviste-me. Não te afastaste em passos leves, como estou habituado. Tão pouco me refutaste, com medo do que ouvirias. Toda a noite te falei da morte e tu deixaste-me estes sinais de vida. A maior riqueza que me poderias ter legado. Salvaste-me e não sabias.


Jorge Roque, Nu contra nu,
Lisboa: Averno, 2014




[ID, 'Parallel Walks', Julho 013]

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

E de Espera (XXXVI)


AO AMANHECER


As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.

Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.

Agora já conheces 
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.


José Miguel Silva
in Poetas Sem Qualidades, Lisboa: Averno, 2002